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A birra europeia de Passos Coelho (e a graçola de Portas)

Passos Coelho e Paulo Portas acordaram com as autoridades europeias pagar o contributo do Estado português para um programa para a Grécia e outro para a Turquia. Agora, ameaçam votar contra ou fazer jogos florais.

O caso é o seguinte: Passos Coelho e Paulo Portas, respetivamente primeiro-ministro e vice-primeiro-ministro num tempo não muito distante, acordaram com as autoridades europeias pagar o contributo do Estado português para um programa para a Grécia e outro para a Turquia. Agora, passados poucos meses, ameaçam votar contra esse compromisso (o PSD) ou fazer jogos florais sobre ele (o CDS), para ver se conseguem que seja derrotado no Parlamento. É certo que consta que, à última hora, poderão recuar e aceitar um estratagema do PS para introduzir uma emenda dizendo o mesmo, para que o PSD salve a face (se é emenda, abstemo-nos violentamente, mas se fosse a proposta original, mesmo que sejam iguais, votaríamos contra!). A razão para este volte-face da direita é simples: pirraça.

Note-se o argumento. A razão do voto contra a proposta governamental não é oposição à medida, na verdade concordam com ela, assinaram-na e comprometeram-se internacionalmente com ela. A medida é mesmo deles, da sua Comissão (que é predominantemente do seu partido europeu) e dos seus governos na Europa. Assinaram-na por isso convictos e mesmo entusiasmados, sempre em nome daquela coisa do Sentido de Estado, das Regras Europeias, da Estabilidade das Políticas, do Respeito por Portugal, decerto já ouviu falar.

A razão para agora votar contra fica por isso nebulosa. O que é que poderia valer mais na galáxia da direita do que o Sentido de Estado e os Sagrados Compromissos Europeus? Só uma razão, a pirraça.

Passos Coelho explica isto com candura: pois então António Costa não garantiu que tinha apoio suficiente para as políticas europeias? Pois nós, que apoiamos as propostas, votamos contra porque apoiamos mas queremos que chumbem para mostrar que ele, que vota a favor, não tem apoio suficiente, e por isso queremos que o compromisso que assinamos na Europa seja rejeitado – com o nosso voto a decidir a rejeição. Percebido? Em bom português, soa assim: “Eu acho que o doutor António Costa, com a sua boa capacidade negocial, tem aqui uma boa prova para mostrar ao país que ele tinha razão e de que a maioria que tem não é incompatível com a assunção dos compromissos internacionais do Estado português e conseguir que a maioria que o apoia, o PCP e o BE, sejam solidários com o PS e com o Governo, aprovando esses compromissos que são compromissos do Estado”.

Portanto, duas conclusões. Primeira, o PSD não vota consoante a sua convicção ou o seu compromisso, vota de acordo com o estado de alma (e agora está enfastiado com o país, vota contra tudo, vai de arraso). Assim sendo, nunca se poderá prever o que votará o PSD no futuro, será cara ou coroa. Segundo, a tal coisa da norma europeia tem dias, pode ser muito importante cumprir ou muito útil incumprir. Fica anotado.

A posição do CDS é um pouco mais curiosa. Põe-se em sentido com o compromisso com a Turquia, que poderá aprovar (o que abre a porta ao “colapso moral” da Europa, escrevia Francisco Assis aqui no “Público”), mas recusa o da Grécia, sendo que assinou ambos quando estava no governo. Porquê aceitar um e recusar o outro, que curiosa diferença? Porque mantém a sua palavra num e se enche de satisfação por recusar a sua palavra no outro? Só há uma explicação: porque Erdogan, o tiranete turco, o homem que proíbe os jornais livres e que bombardeia populações civis, é simpático a esta direita que se anunciou tão “católica” este fim de semana, mas Tsipras é visto como um suspeito esquerdista, apesar das medidas do seu governo. A esse respeito, Portas decidiu incluir no seu discurso de despedida uma graçola (que mau gosto, tentar fazer ajustes de contas com os “syrizinhas” num discurso tão solene, que mau perder, Dr. Portas) para criticar os que não aprovam a medida, porque dela discordam, como forma de explicar que ele vote contra, embora concorde.

O assunto tem importância, porque toca no tabu sagrado da Europa. Mas deixa os partidos em situações muito diferentes.

Para o PS, é uma chatice mas não demasiado: deve haver quem no governo desconfie deste acordo vergonhoso com a Turquia, mas desobedecer à União não está na cultura do PS. No entanto, se o parlamento recusar as duas ou uma das propostas, o PS tem sempre um argumento muito forte para o senhor Juncker e a senhora Merkel: foi a vossa gente que recusou o que tinha assinado convosco, é gente sem palavra, olha com quem se meteram. O PS fica com o caminho aberto para disputar o centro.

Para a esquerda, a situação é fácil. Recusando o plano de austeridade que está a destruir a Grécia e o acordo para o muro da vergonha no Bósforo, a esquerda conseguirá o que pretende. Ganhará portanto. E o Orçamento é aprovado sem dificuldade depois de essas duas normas terem sido excluídas, ou uma delas, porque o que está em causa é evidente. Nem há crise política, nem há crise orçamental.

Para a direita, é um berbicacho. Perde em todos os terrenos. Volta a lembrar ao país que não aceita a decisão maioritária do parlamento, que o relambório do “golpe de Estado” continua. Ou seja, a direita continua ressabiada. Não percebeu o que lhes devia ter ensinado a eleição de Marcelo Rebelo de Sousa e olhem que a lição foi bastante vultuosa. E mostra ao país uma nova faceta do ressabiamento: o PSD e o CDS deixaram de fazer de conta que têm argumentos para as suas escolhas, só têm uma birra. No caso do CDS, uma birra e uma brincadeira, porque não se vai dar bem ao mostrar o seu fascínio por Erdogan.

Talvez a União Europeia também se aperceba de que em Portugal há quem tome decisões com coerência e com estabilidade.

Pela minha parte, agradeço a Passos Coelho e ao novo CDS, que assim se estreia em política, esta tão exuberante exibição da sua efervescência. E agradeço-lhes sobretudo o facto de mostrarem que, mesmo quando ameaçam, se amansam com uma emenda cosmética, pois nunca cairiam na baixeza de votar a favor das propostas com que concordam. Pois se para o PSD e o CDS a política se resume ao grito de “segura-me, se não eu bato”, então estamos conversados.

Artigo publicado em blogues.publico.pt a 14 de março de 2016

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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