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Jornalismo e Democracia

Hoje percebe-se como nunca que a direita está muito mais nos media do que no parlamento ou na rua. Pode o ministro Schauble ficar descansado: terá sempre algumas dezenas de papagaios a repetirem ainda com mais descaramento e prepotência a sua arrogante visão imperial sobre a Europa.

Talvez por isso, pela mediocridade do senso comum conservador instalado tão massivamente nas televisões, rádios e jornais, me tenha sentido estimulado pelo recente filme Spotlight, que aborda uma investigação jornalística de grande fôlego sobre as práticas instaladas de pedofilia e abuso sexual na Igreja Católica de Boston. Percebe-se pela narrativa como é fundamental, para um jornalismo que se pretenda crítico e desocultador dos intrincados mecanismos através dos quais o poder se torna opaco, para melhor se perpetuar, possuir tempo, dinheiro e caráter. Só esses três ingredientes, cumulativamente articulados, permitem desacelerar, criar agendas e ritmos de investigação que não se compadecem com a espuma dos dias e a vertigem da lógica de telenovela noticiosa em que a nossa produção noticiosa está atolada. Spotligth era a equipa de investigação do The Boston Globe, composta por quatro jornalistas a tempo inteiro, instalações autónomas e recatadas dentro do jornal, um orçamento e uma linha editorial que lhe permitia pesquisar com afinco, rigor e minúcia, demorasse o tempo que demorasse. Somente quando esses fatores se conjugaram com a entrada em cena de um novo diretor, estranho às lógicas de cooptação da burguesia local, foi possível começar a juntar as peças do puzzle que provaram como os casos de abuso sexual na Igreja Católica eram endémicos e sistémicos, não sendo um mero epifenómeno isolado. Aos jornalistas interessou-lhes, como fio orientador, desmascarar a lógica de funcionamento da instituição, sem destacarem ingénua e precipitadamente o que poderia ser a anedota, o burlesco ou o horrível. Isso viria por acréscimo, pois de nada serviria o escândalo se não tocasse no nervo do poder.

Ora, em tempos em que a concentração dos media aumenta vertiginosamente, em que a transferência para o online e o chamado “jornalismo cidadão” tem sido acompanhado de uma alarmante quebra de receitas, de despedimentos em massa e de redações cada vez mais esvaziadas e condicionadas pela lógica hegemónica, preguiçosa e imediatista, de produção de notícias, é a democracia, tal como a conhecemos, que está em causa.

Para podermos decidir temos de conhecer tudo. E para conhecer temos de ver para além das fachadas oficiais e oficiosas. Sem jornalismo crítico, organizado e com recursos, respiraremos a ilusão de fazer o nosso vídeo caseiro a cobrir a inundação do vizinho ou o crime da paróquia. Os media instalados agradecem, aproveitam e os poderosos batem palmas de eterno gáudio.

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo, professor universitário. Doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação, coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.
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