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A direita da esquerda

A direita da esquerda, com medo daquilo que mal ousa pensar, atira com o seu próprio medo para cima dos outros juntando-se assim, sem querer digo eu…, à esquerda da direita e à propriamente dita.

A esquerda da direita foi, como se sabe, uma das grandes ideias de Marcelo, hoje presidente eleito.

Como Marcelo ganhou as eleições, esta nova referência topográfica, parece ter ganho os espíritos, mesmo os mais destemidos. É que a expressão é premonitória de uma outra aparentemente contraditória mas que apenas a completa: a direita da esquerda.

A “futilidade” da promessa de virar a página da austeridade ficando refém da ideia, agitada pelo “mata e esfola do BE e do PCP”, de que a política é todo-poderosa e que a democracia exige enfrentar os poderes fácticos e sem escrutínio das comissões de Bruxelas, teria deixado Costa na corda bamba; pior, no fio da navalha.

Entre as críticas da direita e das organizações financeiras internacionais – que como se sabe são da esquerda da direita e também da direita da esquerda – e as ameaças da esquerda extrema (para evitar dizer extrema esquerda) que “recupera a dimensão mística da pátria anunciando a marcha contra os credores como antes se marchou contra os canhões”! (Manuel Carvalho, estimável jornalista, no Público) só há espaço para o medo, a incerteza e a angústia.

Um Costa incapaz de cumprir as promessas porque obrigado a cumprir as ordens imperativas de Bruxelas. E, se quiser ser fiel à sua palavra, vai lançar o país num conflito com as instituições europeias, de consequências imprevisíveis, tipo: ou pagas o que deves ou os cobradores de fraque partem-te as costelas, na melhor das hipóteses.

Surge então a assertiva da direita da esquerda, mais forte ainda que a da própria esquerda extrema: “O mal está na dependência que temos de terceiros. Enquanto não encararmos o problema não haverá maquilhagem orçamental, nem bravatas patrioteiras, capazes de nos salvar.”

Portanto a necessidade de reestruturar a dívida começa a fazer caminho mesmo entre os mais timoratos ou apenas cautelosos que não são capazes de o dizer abertamente. Apenas insinuá-la ou sugeri-la, dando porrada compensatória naqueles que o afirmam desde sempre e justificam com argumentos sérios.

A direita da esquerda, com medo daquilo que mal ousa pensar, atira com o seu próprio medo para cima dos outros juntando-se assim, sem querer digo eu…, à esquerda da direita e à propriamente dita.

Travar a austeridade, recuperar o que foi liquidado, repor rendimentos e pensões, garantir emprego através de investimento produtivo, impor as 35 horas para melhorar a produtividade, acabar com o trabalho de borla e criar postos de trabalho, ressuscitar o SNS, a Escola Pública e o Estado Social ? Jam[ais]é! isso iria incompatibizar-nos com a U.E.

Portanto, enquanto não se reestruturar a dívida temos que ser obedientes, insinua alguma direita da esquerda.

Estou a vê-los a enviar sms aflitos para os incautos que nos EUA ameaçam eleger Bernie Sanders: Wall Street não permitirá que o Bernie faça o que promete. Não caiam na armadilha, votem na Hillary!

Seria então necessário que a esquerda da direita e a direita da esquerda se encontrassem de novo, num jubiloso e duradouro centro que nos garantisse que, dependendo de terceiros, só nos salvaríamos se dependêssemos de terceiros? Se obedecermos fielmente aos % impostos segundo o “livre arbítrio” daqueles gajos que só têm feito trapaça, asneira, que nunca acertaram uma previsão e falham todos os objectivos com que justificam a cândida extorsão, mas que não hesitam em fazer cara feia e façanhuda ameaça às previsões do governo para o Orçamento?

Ou seja se obedecermos aos aldrabões bem pagos para assegurarem que a política não passa de um débil epifenómeno do bom funcionamento dos mercados ou do seu nervosismo próprio?

O mais intrigante é o facto de serem estrénuos combatentes, com argumentos bem sustentados e irrefutáveis do ponto de vista político e económico, contra a irracionalidade e a ilegitimidade das medidas impostas por Bruxelas e Berlim que ameaçam a própria Europa, virem agora, que se deram passos inéditos para a afirmação da soberania democrática do povo português, preconizar a catástrofe se o Governo, bem sustentado numa maioria de esquerda no Parlamento, se atrever a fazer frente - ainda que apenas no âmbito de negociações com propostas tímidas, razoavelmente obedientes, mas de indiscutível e urgente necessidade de resposta ao estado de emergência herdado dos pafistas - à irracionalidade e à prepotência dos poderosos que eles próprios tão bem têm desmascarado.

Pensando bem, o alvo não é tanto o Governo ou, antes, António Costa, apenas acusado de estar enredado nas suas “próprias contradições” ao ter-se entendido com a “esquerda extrema” e assim desequilibrando o amplo consenso nacional nascido em Novembro de 1975: pataca a mim, pataca a ti durante estes gloriosos quarenta anos.

Na verdade, o alvo da direita da esquerda é impedir que se possa garantir efectivamente, como está a acontecer com sucesso anunciado, uma governação capaz de travar progressivamente e com eficácia a austeridade ao mesmo tempo que se vai pondo às claras as manigâncias pafistas coniventes com a Comissão Europeia e esse antro de cínicos programadores de atropelos que se chama Eurogrupo.

Argutos investigadores lançam subrepticiamente a palavra de ordem “Cherchez le Bloc” através do mais explícito e consonante “Cherchez la femme”: aquela que desencadeou as fúrias com o singelo convite: “se estivermos de acordo quanto a repor os direitos e condições mínimas para travar e inverter o ciclo austeritário, cá estaremos no dia 5 de Outubro para conversarmos”. E assim foi e a conversa passou de conversa e converteu-se em acordo e acção. Esse então o grande erro que pôs em causa os bons preceitos dos bem intencionados “desde que”…, dos empatas, dos valentes anunciadores de desgraças advindas da ordem estabelecida e das ainda maiores desgraças se a ordem estabelecida for beliscada. E já cá não está quem falou, porque interesse mais alto se alevanta. Devagar se vai ao longe já lá dizia o Lenine (passos em frente e atrás,lembram-se?) e o Maquiavel – vocês já não lêem os clássicos!?(Soromenho Marques, no DN)

Correr com a direita foi lindo; derrubar o muro e acabar com o instalado arco vicioso da governação foi coisa de se ver! Literalmente, porque o Orçamento não pode sair da prisão do PEC nem da forca do Tratado Orçamental. Seria desafiar os maus (que, como temos dito e demonstrado são mesmo muito maus) e convocar a catástrofe sobre 10 milhões de portugueses.

No fio da navalha! Com a Paf a coisa era muito mais previsível: ordem dada ordem cumprida e permitia uma crítica acutilante e a demonstração da superioridade do moderno pensamento da direita da esquerda.

As suaves, ainda que criadoras de esperança e ânimo sustentados, medidas já implementadas e previstas no OE, sufragadas sem sofismas a 4 de Outubro, desencadearam um tufão de indigna indignação, de imbecilidade alarmante; uma avalanche de medos, convocando todos os fantasmas que constituíram a argumentação com que os pafistas tentaram alienar, sem o conseguirem, a vontade de mudança que se foi consolidando à medida que a bestialidade da tão inútil quanto destruidora austeridade ia arrasando o país e os portugueses e portuguesas.

Quando Marisa Matias colocou no centro da sua campanha a luta contra o medo, não me pareceu a melhor escolha. Achei que devia ter sido a luta contra a desigualdade. Mas, de facto, Marisa teve razão: a luta contra a desigualdade exige que desarticulemos meticulosamente a táctica dos construtores de medos acastelados na direita e na esquerda da direita tendo por batedores os tais da direita da esquerda.

Sobre o/a autor(a)

Coronel na reforma. Militar de Abril. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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