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Os emigrantes e as eleições presidenciais: uma história de exclusão

Na era da Internet, o voto eletrónico deve poder constituir uma opção para estes cidadãos dispersos em vastos territórios.

Aproximam-se as eleições presidenciais e com elas, mais uma vez, deparamo-nos com esta confrangedora realidade: o direito de voto dos emigrantes existe, mas não existem as condições de exercício desse direito, pelo que, na prática, estamos perante um direito formal, vazio, oco de sentido, um direito sem direitos.

Pergunto: para quê manter esse direito se ele não corresponde a nada? Para dar boa impressão? É que este país de emigração por excelência, que tanto tardou a reconhecer aos seus cidadãos emigrantes, o direito de participarem na eleição do primeiro magistrado da Nação, semeou o caminho que leva à consagração desse direito de obstáculos tirando-lhe, assim, todo o alcance.

O facto é que, passados mais de quarenta anos após a restauração da democracia em Portugal (e quase vinte anos após o reconhecimento do direito de voto dos emigrantes nas presidenciais) e, ainda mais, depois da passagem da direita radical no poder, o direito de voto dos emigrantes nestas eleições - às quais limitamos o presente artigo – ou antes, o exercício daquele direito, tornou-se cada mais impraticável.

Com efeito, sendo presencial, o voto exige a deslocação aos postos consulares que, de governo em governo, de reforma em reforma (ler de cortes orçamentais em cortes orçamentais), se têm reduzido a um ritmo sustentado, obrigando os emigrantes a percorrer distâncias cada vez mais importantes para poder votar.

A título de exemplo, no Consulado Geral de Portugal em Paris, funcionarão, nos próximos dias 23 e 24 de janeiro e 13 e 14 de fevereiro (se houver segunda volta) cinco mesas de voto onde, para além dos nossos concidadãos residentes em Paris e na região parisiense, poderão exercer o direito de voto os portugueses das regiões de Lille, Rouen, Reims e Nantes, antigas cidades consulares onde agora funcionam meras presenças consulares.

Essas cidades ficam distantes de Paris de, respetivamente, 225, 135, 144 e 384 quilómetros, por estrada, e um percurso de ida e volta em comboio de alta velocidade (TGV) consome 4h30 tratando-se de Nantes (7h10 de carro), 2 horas, tratando-se de Lille (4h30 de carro) e 1h30 tratando-se de Reims (3h de carro). Quanto à cidade de Rouen, que não dispõe de acesso em comboio de alta velocidade, o percurso (ida e volta) oscila entre 2h20 e 3h00 (3h30 de carro). E estes cálculos apenas contemplam os que vivem nas cidades intramuros - o que não é o caso da esmagadora maioria - e os trajetos do centro ao centro das cidades e, não, os do centro ao consulado e inversamente.

Não sei qual o grau de espírito cívico necessário a um cidadão e, por conseguinte, a um cidadão- emigrante, para que ele aceite fazer tamanhos percursos para participar na escolha do Presidente da República. E isto tanto mais quanto estes percursos tiveram de ser multiplicados por dois para aqueles que se recensearam após a supressão das estruturas consulares naquelas cidades, atendendo a que o recenseamento tem de ser para os emigrantes – que perderam a sua capacidade eleitoral, aquando da mudança de residência para o estrangeiro - um acto voluntário e presencial.

Mas, admitindo que um invulgar espírito de sacrifício dos emigrantes conjugado com um invulgar conceito de cidadania permitissem ultrapassar estas barreiras, uma outra se lhes atravessaria pelo caminho: o custo a suportar para ir votar. Com efeito, é necessário pagar as deslocações, o que representa para os emigrantes residentes em Lille, Rouen, Nantes e Reims intramuros, um custo de respetivamente 80 a 100 euros, 30 a 50 euros, 100 a 154 euros e 52 a 90 euros. Assim sendo, para um casal de emigrantes que venha votar de Lille a Paris em TGV o custo é de 160 a 200 euros (sem contar com o recenseamento que acarreta, além do mais, a perda de dias de trabalho).

O exemplo que demos e os contornos a que o circunscrevemos estão longe de esgotar o percurso de combatente e o preço a pagar pelo direito de voto. Na própria França, onde existe a maior comunidade portuguesa da Europa, há casos mais difíceis, e situações similares verificam-se em países como a Alemanha, o Reino Unido, a Suíça. E o que dizer do Brasil, onde podem ser precisas viagens de duas horas de avião para aceder ao Consulado?

Os partidos políticos (como os candidatos presidenciais) não se podem limitar a convocar os emigrantes nos atos eleitorais e a apelar ao espírito de cidadania: fazê-lo é prosseguir uma estratégia puramente oportunista já que, sem alteração da lei eleitoral, estaremos sempre confrontados com a magreza assustadora dos cadernos eleitorais face às populações reais emigradas, e a taxas de abstenção assustadoras.

Urge, pois, alterar a lei, por forma a que ela contemple a real possibilidade de desdobramento das mesas de voto por um lado e, por outro, a introdução de novas modalidades de voto e de recenseamento. Na era da Internet, o voto eletrónico deve poder constituir uma opção para estes cidadãos dispersos em vastos territórios, onde as instalações do Estado português são cada vez mais raras. Da mesma forma, o recenseamento automático (para os que partem), ou por via eletrónica ou postal (para os que, já emigrados, foram injustamente privados da sua capacidade eleitoral) devem ser a regra.

De outra forma, continuamos a estar perante um simulacro de democracia. Com efeito, nenhuma democracia digna desse nome pode exigir dos que emigram – e na grande maioria dos casos dos que foram constrangidos a emigrar devido às políticas de desemprego, empobrecimento e exclusão cometidas no país (o que é o caso da vaga de emigração da década de sessenta, mas também da atual que a chega a superar, em alguns anos) – um preço tão elevado para participar na escolha do Presidente da República.

Ora, essa escolha é fundamental para os emigrantes. Com efeito, um Presidente que defenda a igualdade de tratamento dos cidadãos, consagrada na Constituição da República, não pode tolerar a discriminação crescente de que têm vindo a ser vítimas os que emigram. Tal discriminação, patente no facto de o desinvestimento verificado nas áreas da emigração ter coincidido com o maior êxodo de população portuguesa desde a década de sessenta, é indigna de qualquer democracia e, a fortiori, a do Portugal migrante.

Artigo publicado em publico.pt a 18 de janeiro de 2016

Sobre o/a autor(a)

Doutorada em Ciências de Gestão pela Universidade de Paris I – Sorbonne; ensinou Economia portuguesa na Universidade de Paris IV -Sorbonne e Economia e Gestão na Universidade de Paris III – Sorbonne Nouvelle
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