A mais insignificante escoriação ou traumatismo, inocentes ao primeiro vislumbre, podem, inesperadamente transformar-se em infeções galopantes ou hemorragias ocultas: não carecendo qualquer pequena maleita de tratamento exagerado, requer sim que se dedique, nem que somente um instante, de minuciosa atenção.
A falência do SNS é a demonstração flagrante da desatenção aos pormenores, ignorando o cuidar em todas as fases iniciais e de prevenção: o Sistema produz doentes mais adoecidos, requerendo mais investimento para conseguir menos resultados.
No seio do maior grupo profissional prestador de cuidados de saúde, os Enfermeiros, há muito se instalou uma perigosa infeção, que contagia por inerência todo o Sistema de saúde; uma hemorragia incontrolável, que conduz a sinais bem visíveis mas que se insistem em ignorar: mais de 10.000 enfermeiros abandonaram o Pais nos últimos 5 anos.
A precariedade é a laceração que começou minúscula e hoje fere fatalmente: a mudança do paradigma na relação de trabalho conduz a uma instabilidade nunca antes vista, fazendo dos enfermeiros meros prestadores circunstanciais.
A invenção dos Hospitais-empresa conseguiu tornar inacessível a qualquer enfermeiro de uma instituição pública o acesso ao estatuto de funcionário público: mais, deixou a contratação exposta a regras dúbias, a critérios vergonhosos. Perante a passividade sindical criaram-se 2 classes de enfermeiros, gerando a mais profunda cisão na classe.
Por entre as abertas portas de fundos de oportunidade introduziram-se sorrateiros os “recibos verdes”, convenientes em momentos esporádicos mascarados de lucro fácil no presente , mas com um preço demasiado elevado reclamado no final.
Hoje, a Enfermagem ameaça tornar-se uma classe de precários e as instituições são hoje sustentadas por profissionais cuja rotatividade e incerteza impedem de executar um trabalho na plenitude das suas capacidades.
Num Sistema desinvestido e falido, que funciona baseado no esforço sobre-humano dos seus profissionais, entende-se a decadência dos cuidados uma vez que suportar-se em profissionais estabelecidos e especializados é diferente de ser sustentado em profissionais indignamente “enxotados” de um lado para o outro com contratos temporários.
Sendo que a formação académica é um mero ponto de partida para o desenvolvimento profissional, o crescimento de cada enfermeiro sempre se baseou na estabilidade e na aprendizagem com os colegas mais especializados: a combinação da experiência e o desafio trazido pelos novos elementos sempre foi o motor da inovação num Sistema que milagrosamente produz excelentes cuidados sem qualquer investimento que não o pessoal dos profissionais.
Atualmente proliferam as agências de trabalho temporário, os contratos de estágio profissionalizante e os recibos verdes: dos profissionais espera-se que compareçam e produzam um máximo de tarefas automatizadas, guiadas por protocolos cegos e obsoletos, que esquecem a complexidade da doença e a singularidade de cada cidadão.
Tornou-se um vírus enraizado, deixado sem tratamento, a descartabilidade das pessoas: os parasitas que compactuam com o Sistema, agarrando-se a postos de chefia, usam e abusam da ameaça fácil que emerge de um mercado de reduzidíssima empregabilidade. O erro inerente à aprendizagem tornou-se indesculpável, tal como a doença, a gravidez, a assistência à família ou qualquer outra condição inerente a uma vida.
Os atrasos progressivos e criminosos nos picos de inverno, são agravados não só por uma população mais adoecida, que abandona tratamentos pela precária situação económica, mas igualmente porque os poucos prestadores são caras novas e inexperientes, que entregam o melhor de si, mas a falta de experiência consome minutos num sistema que a cada segundo parece desistir dos seus cidadãos e dos seus profissionais.
Numa altura em que as políticas de saúde se viram para padrões de qualidade e desempenho, há uma aberrante negligência da real aplicabilidade de tais políticas, pela instabilidade gerada nas equipas prestadoras, impedindo qualquer continuidade de projetos ou implementação de melhorias: a figura do enfermeiro substitui-se erradamente pelo prestador automatizado, contribuindo apenas para a execução de números e projeções, ainda que para isso tenha de abdicar da sua própria humanidade.
A vasta classe dos enfermeiros encontra-se envolvida em processo eleitoral para a sua Ordem profissional. As promessas para os enfermeiros são fáceis de construir, e os vários atores envolvidos no enredo desmultiplicam-se em propostas que têm tanto de atrativas, como de abstratas e desconexas. A larga maioria, não contempla, no entanto a precariedade, e cria-se todo um fosso de clivagem na profissão pior que aquele escavado pela injustiça entre contratados das EPEs e contratados da função pública.
A maioria das candidaturas deliberadamente promete renegociação de carreiras e salários, ignorando que para um precário não há carreira ou salário garantido. Ignora que para os contratados das EPEs não há carreiras, mas antes um simples contrato que não contempla qualquer escalada ou progressão.
Prometem digladiar-se por 35h semanais, batalhar por patamares salariais mais elevados, fazendo vista grossa ou denotando somente ignorância atroz, que para os precários não há limite de horas, não há segurança ou qualquer proteção na doença ou na dificuldade.
Atenda-se porém que muitos dos personagens envolvidos, mascarados de salvadores, não deixam eles próprios de ter um dedo culpado numa situação alarmante e não dignificante: desde quadros dirigentes dos partidos da coligação que devastou o SNS, até altos cargos na Direção Geral de Saúde, todos se vincam com promessas milagreiras que nunca ousaram tomar em mãos em tantos contextos em que o poderiam ter feito.
Em causa está apenas em si a dignidade: a dignidade da própria enfermagem e a dignidade de quem trabalha. O mais flagrante caso ocorreu há cerca de 2 anos quando mais de 200 enfermeiros foram selvaticamente despedidos na Saude24.
As instituições representativas, Sindicatos e Ordem, estão tão distantes da realidade que não ousaram intervir, e mais de 200 enfermeiros tomaram nas suas mãos a sua defesa exigindo apenas e só dignidade. Num ato isolado e heroico somente a Secção Regional Sul da Ordem dos Enfermeiros abriu as suas portas, intervindo e reclamando respeito pelos enfermeiros, respeito pela enfermagem que brilhantemente desempenhavam, relembrando que era baseado neles que funcionava um serviço vital à população.
No paradigma oposto entendeu-se a posição da Direção Geral de Saúde, que frisou que o serviço S24 estava contratado a uma empresa e apenas os números interessavam. As pessoas, a dignidade, as condições, essas não importavam, resumindo os enfermeiros a meras estatísticas: o seu despedimento alias permitiu reduzir o preço da linha, e para quem gere a Saúde do país, só isso interessa.
E assim, uma administração crivada de militantes PSD e respetivos capatazes, levaram a cabo a maior limpeza laboral coletiva de que há memória na Enfermagem, ameaçando, coagindo e perseguindo aqueles que sempre exigiram tão apenas e só dignidade.
Não há enfermeiro que não lute diariamente contra um Sistema demasiado cruel para os que cuida. Luta com um sorriso na face que ameniza os seus utentes, abdica das suas horas de refeição, esquece por instantes que tem uma família, amigos e uma vida própria. Chora pelos que parte, sorri pelos que ajuda a nascer, que se zanga pelas injustiças, luta pelos direitos dos que cuida. Fica vigil enquanto todos dormem, não para enquanto as pernas de todos clamam por Descanso.
Não há enfermeiro que não mereça pelo menos segurança, saber que terá trabalho no mês seguinte, que pode tornar-se especializado numa área, que tem direito a de tempos a tempos também a adoecer ou a recordar-se que tem família. Haja a possibilidade de saber que as horas de vigília, o esforço incansável tem um mínimo resultado quando e desse esforço que se faz a diferença na vida dos utentes.
E tal como os enfermeiros, todos, porque trabalhar tem de ser revestido novamente de algo que há muito se perdeu: dignidade.
Temos direito a ser julgados pelo nosso desempenho e não a ser peças descartáveis numa maquinaria de lucro. Temos direito a ser pessoas e não apenas trabalhadores ou dados estatísticos.
Haja cirurgia, antibiótico ou desinfetante que cesse esta infeção, esta hemorragia que definha a enfermagem, toda uma classe trabalhadora, que tão somente ambiciona trabalhar e ser reconhecida e respeitada.