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A globalização do eco-socialismo já começou

A cimeira representou um esforço de democracia participativa inédito até agora num evento organizado por um governo. Os mesmos movimentos sociais que foram expulsos da Cimeira de Copenhaga, em Dezembro, quando os chefes de estado de todo o mundo se reuniram para discutir o futuro das negociações climáticas, estiveram no centro da Cimeira de Cochabamba.

Uma vez mais, a sociedade civil boliviana mostra ao mundo como a mudança social pode ser conseguida pela acção colectiva. Há dez anos atrás, a população de Cochabamba manifestava-se nas ruas contra a privatização da água, uma exigência do Banco Mundial. Numa luta dura, marcada pela repressão dos manifestantes pelo governo, o povo defendeu o seu direito ao uso de um recurso essencial. Quando uma TV mostrou imagens de um capitão do exército boliviano disparando sobre a multidão e matando um jovem, o governo ficou de tal forma fragilizado que foi forçado a recuar.

A vitória das "guerras da água de Cochabamba" aumentou as expectativas dos movimentos sociais. Sucederam-se então fortes protestos pela nacionalização da extracção de gás natural e pelos direitos das comunidades indígenas. Uma vez mais, o governo reagiu com a repressão e dezenas de pessoas morreram nas mãos do exército. Mas a forte resistência das populações foi recompensada: após uma crise política marcada pela demissão de dois presidentes, a eleição de 2005 resulta na vitória expressiva de Evo Morales, figura central das lutas sociais.

O governo de Morales não só tem sido fiel aos princípios dos movimentos sociais que o apoiam como se tem destacado pela defesa da sustentabilidade ambiental. Em Copenhaga, a Bolívia apresentou destacou-se pelas suas propostas ambiciosas e incisivas. Para este país, a justiça climática é uma questão de sobrevivência, já que a maioria das suas reservas de água dependem dos glaciares, em rápido desaparecimento devido a uma crise ambiental para a qual não contribuiu. Compreende-se assim porque a Bolívia, tal como os outros países da Aliança Bolivariana para as Américas (como a Venezuela, Cuba e o Ecuador), se recusou a assinar o Acordo de Copenhaga, um fraquíssimo compromisso negociado pelos EUA, em conjunto com os maiores poluidores.

É neste contexto que surge então a Cimeira de Cochabamba. O objectivo principal é o de mobilizar os movimentos sociais de todo o mundo na defesa de um planeta cada vez mais justo e menos poluído, enfrentando o poder das corporações. A mobilização foi realizada em torno das quatro ideias apresentadas pela Bolívia em Copenhaga: uma Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra que atribua à natureza o direito de protecção contra a aniquilação, um Tribunal Internacional para a Justiça Climática que puna aqueles que violam acordos internacionais ambientais, o reconhecimento e pagamento da dívida ecológica que os países industrializados detém em relação aos países mais pobres (suas ex-colónias) e um referendo mundial sobre as alterações climáticas.

Estas são ideias poderosas, senão utópicas. A sua concretização dependerá da força dos movimentos sociais, que se organizaram na cimeira em grupos de trabalho temáticos. Todo o processo foi um exemplo de democracia participativa e de participação popular na tomada de decisões. Nas palavras do embaixador da Bolívia na ONU, Pablo Solón, "A única coisa que pode salvar a humanidade de uma tragédia é o exercício da democracia global."

As declarações finais da Conferência de Cochabamba, resultado de uma discussão que extravasou as fronteiras da cidade boliviana através da Internet, descrevem o capitalismo como "um sistema imperialista de colonização do planeta". O controlo de territórios e recursos naturais, essencial no processo de acumulação capitalista, requer uma indústria militar forte que neutralize a resistência popular.

Os "Protocolos de Cochabamba" também condenam a tentativa da parte de alguns países, notavelmente os EUA, de substituir Quioto por um tratado internacional ainda mais fraco. Do que necessitamos, assinalam os movimentos sociais progressistas, é de soluções para as alterações climáticas baseadas no poder das comunidades e não em mecanismos de mercado cuja ineficácia foi já comprovada. Os protocolos assinalam também a necessidade de envolver os povos indígenas na preservação das florestas, em vez de entregar o futuro das florestas ao casino do mercado de carbono.

Evo Morales terá agora a tarefa de levar estas propostas à próxima cimeira climática, a realizar-se no final do ano no México. Não será tarefa fácil. O governo de Obama mostrou já que a sua estratégia passa por insistir no Acordo de Copehaga como o sucessor de Quioto, tendo mesmo cortado a ajuda externa aos países que não o assinaram. Mas há governos que não se deixarão vergar: o Ecuador, por exemplo, já declarou que prescinde de bom grado da ajuda externa dos EUA em troco da ratificação de Quioto.

Vivemos um momento crítico. A frase "o mundo está nas nossas mãos" assume uma nova dimensão à medida que os efeitos da crise climática se tornam cada vez mais evidentes. Do confronto entre a mobilização social e a vontade do lucro sairá o destino do planeta em que habitamos. Neste contexto, iniciativas como a Cimeira de Cochabamba mostram o potencial que a aliança entre movimentos sociais e forças políticas progressistas pode ter no processo de transformação social. Seria um enorme erro da parte da esquerda ignorar esta evidência e cair no sectarismo fácil de quem prefere enfatizar as contradições presentes na esquerda da América Latina a criar uma alternativa global ao capitalismo. A prioridade deve ser, portanto, a construção de uma rede de activismo eco-socialista global, que terá de ser tão democrática quanto plural. O primeiro passo já foi dado.

Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
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