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A direita a que temos direito e o regresso da política

Cavaco foi o líder da oposição durante estes dois meses e reafirmou ontem esse papel.

Ontem terminou o impasse a que o país foi submetido pela Presidência da República na sequência das eleições de 4 de Outubro. Cavaco Silva, o homem que tinha os cenários todos estudados, afinal tinha apenas uma vontade: manter as mesmas políticas, o que implicava conservar a direita no governo ou obrigar a uma coligação que a levasse, com o PS, a compor um “grande centro”. Mas o plano saiu furado e ontem Cavaco teve mesmo de dar posse a um governo PS com apoio à esquerda.

O discurso que fez entrará para os anais da história política portuguesa pelo rancor e pelo desrespeito que manteve – e mantém – na solução democrática saída das eleições. Fez um histórico destes dois meses que começa no derrube do governo de direita 2.0 que optou por dar posse, mesmo sabendo que não tinha nenhumas condições políticas para existir. Deixou claro que só não convocou novamente eleições porque disso estava impedido. Desconsiderou os acordos feitos com os partidos de esquerda, que dão sustento parlamentar a este governo e que determinarão partes importantes do programa que o governo levará a cabo. Optou por largar umas citações sobre a situação económica do país que justificariam a manutenção do rumo da austeridade. Exigiu que, apesar da mudança, tudo se mantivesse na mesma.

Houve dois elementos que, entre as eleições de Outubro e a tomada de posse de ontem, ficaram mais claros. O primeiro é justamente esse: Cavaco foi o líder da oposição durante estes dois meses e reafirmou ontem esse papel, transformando o discurso da tomada de posse numa declaração de vencido e numa ameaça de demissão a qualquer momento. O segundo aspeto que se tornou claro foi a visão meramente instrumental que a direita tem das regras democráticas. Ilustrativo disso foi, nas passadas semanas, a reação desesperada diante da perspetiva de não se poder manter como governo. É legítimo um governo PS? É, mas não respeita a tradição. Tem apoio parlamentar? Tem, mas não foi quem “ganhou”. Não se pode fazer mais nada? Pode, mudar a Constituição. E por aí fora. Se não houve efusivas comemorações com a saída do governo minoritário da direita, houve uma profunda sensação de alívio que diz o bastante.

Mas há um outro elemento que a nova conjuntura política trouxe e que não deve ser descurado. É a promessa do regresso da política. Durante quatro anos e mais uns dias tivemos uma dura opção pela austeridade a coberto de um discurso da inevitabilidade. Era assim porque tinha de ser. Passado este ciclo, Portugal é hoje um país mais pobre e profundamente desigual. Isso dá-nos a medida das tarefas que o governo do PS terá pela frente. Ancorado em acordos à sua esquerda, terá a responsabilidade de reverter a austeridade e de combater o desemprego, de conter a emigração forçada e de preservar a segurança social, de defender os serviços públicos e parar as privatizações. Mas também fazer da dignidade, da igualdade e dos direitos algo mais do que bandeiras genéricas. As primeiras medidas aprovadas pela esquerda junta no novo Parlamento aparentam ser, a este respeito, um bom sinal.

O novo governo enfrentará enormes dificuldades. Quer reverter a austeridade e cumprir as metas europeias; não poderá descurar os fundamentos políticos e as propostas concretas que deram corpo ao apoio dos partidos à sua esquerda; terá de enfrentar desde o primeiro dia uma direita que tem poder – político, económico, mediático - e que está apostado em exercê-lo. Não sabemos pois se este novo governo terá sucesso. Mas sabemos que uma das condições para isso aconteça é justamente que a promessa do regresso da política se concretize. Ou seja, que deixemos de ser reféns da ideia de que não há espaço para a escolhas a não ser que estas sejam variações em torno da mesma receita batida. Este não é, claro, o primeira dia do resto das nossas vidas, mas há uma esperança sem euforia que torna este tempo uma responsabilidade e um desafio para a esquerda.

Sobre o/a autor(a)

Historiador, doutorado em História, investigador do CES/UC.
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