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O racismo nunca existiu

O terrorismo serve como pretexto para libertar a caixa de pandora dos medos e dos preconceitos.

Eduardo Lourenço escreveu um ensaio com o título irónico de “O Fascismo Nunca Existiu”, para dar conta de como uma parte substancial do país apoiou o nefasto regime, com uma cumplicidade muitas vezes anódina e passiva, mas com consequências na perpetuação da ditadura. De repente, éramos todos revolucionários e socialistas, ainda que, pouco tempo antes, muitos, demasiados, achassem que fazia sentido o “Deus, Pátria, Família”.

Hoje, algo de semelhante se passa com o racismo. Ninguém, com exceção da tropa de choque do PNR, ousa atentar declaradamente contra a retórica multicultural. O convívio entre etnias é até exaltado como “marca” de cidade e atração de festivais. Mas, no esquecimento das redes sociais, tantos vociferam contra os refugiados, por razões oblíquas, mas onde não é difícil descortinar sentimentos de animosidade contra a diferença étnica. Os filmes de Pedro Costa revelam pelo lado da ficção como perduram no Portugal pós-colonial as práticas e os imaginários de discriminação. Os bairros mais pobres continuam a ser ocupados por uma grande percentagem de minorias, bem como as profissões com piores condições de trabalho. Lisboa, cidade de encruzilhadas e trânsitos, tem bem marcada na sua história e no seu presente as arestas dessas desigualdades. Comentadores, como Miguel Sousa Tavares, deixam de lado qualquer pretensão à sofisticação e afirmam, sem pudor, que o Islão é o problema e que “foram eles que começaram uma guerra contra nós”, englobando todos contra tudo, na indistinção onde nascem os ódios e se alimenta a irracionalidade. O terrorismo serve como pretexto para libertar a caixa de pandora dos medos e dos preconceitos, amalgamando o que é distinto e proclamando, como o fraco Hollande, investidas belicistas. Bem mostra o Papa que a pobreza é a grande sementeira do terror.

Por tudo isso, é de saudar que uma negra e um cigano façam parte de um governo. Mas é de exigir, sempre, que tais exemplos repercutam na transformação social e não sejam meras manifestações de tokenismo, em que pequenas concessões públicas escondem a persistência da opressão e da desigualdade mais enraizada.

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo, professor universitário. Doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação, coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.
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