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António Costa e a esquerda: o que mudou?

O acordo estabelecido entre o PS e os partidos à sua esquerda é um facto inédito na política portuguesa das últimas décadas. A sua inegável importância desafia-nos para uma reflexão e um debate sobre como as esquerdas chegaram até aqui e o que podemos esperar que dele resulte.

O acordo estabelecido entre o PS e os partidos à sua esquerda é um facto inédito na política portuguesa das últimas décadas. Não é o primeiro acordo que reúne aqueles partidos. Lembremos por exemplo a coligação liderada por Jorge Sampaio em Lisboa ou as muitas votações comuns no Parlamento. Mas é o primeiro com impacto na governação do país e com potencial para iniciar uma profunda viragem na política portuguesa. E, certamente, não deixará de ter consequências no conjunto da esquerda e em cada um dos seus partidos, não apenas táticas mas, seguramente, também programáticas e estratégicas.

O acordo estabelecido entre o PS e os partidos à sua esquerda é o primeiro com impacto na governação do país e com potencial para iniciar uma profunda viragem na política portuguesa. E, certamente, não deixará de ter consequências no conjunto da esquerda

A sua inegável importância desafia-nos para uma reflexão e um debate sobre como as esquerdas chegaram até aqui e o que podemos esperar que dele resulte em termos de reconfiguração do xadrez político e partidário, para além das políticas concretas que ele define, elas próprias motivo de discussão. O “antes” e o “depois” do acordo vão dar muito que falar, não vai faltar controvérsia, aliás, ela já está aí. Felizmente, digo eu.

Li, sem surpresa – são ideias insistentemente repetidas - o que a respeito do “antes” pensam Rui Tavares, líder do Livre, e Paulo Fidalgo, presidente da Renovação Comunista (RC). Recordando, a RC concorreu nas últimas legislativas em conjunto com o Livre e a Manifesto na candidatura Tempo de Avançar, depois de ter estabelecido um acordo com o PS de António José Seguro nas europeias.

Rui Tavares, no Público de 9 de novembro, pergunta “Por que é que a esquerda portuguesa não se entende?” e responde: “Porque as direções dos partidos não querem [...] eram estas que determinavam a oportunidade tática de fazer ou não alianças. As direções partidárias de esquerda quiseram finalmente chegar a entendimento, e isso — sendo simples — muda tudo [...] Acabam os álibis e os pretextos para a falta de entendimento [...] a partir de agora, se houver uma maioria de esquerda, passa a ser possível haver um Governo de esquerda”.

Por sua vez, em declarações à Lusa no mesmo dia, Paulo Fidalgo recordou o papel dos fundadores da RC na “reclamação muitas vezes solitária e incompreendida de uma convergência entre os partidos de esquerda [...] Sem eles, sem a sua persistência, num trabalho quase isolado, muito incompreendido pelas forças oficiais do movimento comunista e do próprio Bloco de Esquerda que sempre tiveram leituras opostas a esta mas que felizmente a história e a força popular vieram agora proporcionar uma evolução que a todos contenta e a partir de agora somos todos vencedores”.

Contribuo para este debate discordando do voluntarismo político destas opiniões e da simplificação mistificatória que fazem sobre o posicionamento e o contributo do PS e dos partidos de esquerda para a convergência, acordo ou aliança entre eles. Faço-o porque sem perceber o “antes” vamos comprometer e falhar o “depois”.

Foi sempre por opção do próprio PS e não por falta de “parceiro” à esquerda que sucessivas direções do Partido Socialista se deslocaram e encostaram à direita

Estas posições procuram culpar por igual o PS, o BE e o PCP por um tão prolongado desentendimento e escamotear e branquear as pesadas responsabilidades do PS, tanto pelas políticas de direita que aplicou quando governou, como pelas alianças que escolheu para suportar essas mesmas políticas e os respetivos governos. É um pouco incompreensível que ainda seja necessário relembrar a experiência de 40 anos, durante os quais houve governos do bloco central (PS e PSD), governos do PS com o CDS e governos do PS (Guterres, Sócrates) a que não faltou o apoio parlamentar da direita sempre que necessário. Será que Rui Tavares e Paulo Fidalgo defendem que, nesses momentos, a esquerda devia ter estendido a mão ao PS?

Só por fraca memória ou reserva mental se podem ignorar os múltiplos desafios lançados pelo Bloco de Esquerda ao PS ao longo dos seus 16 anos de existência e em torno dos mais variados objetivos e nas mais diferentes circunstâncias políticas. Recordo, rapidamente e apenas, o convite dirigido pelo BE ao PS (e também ao PCP) para encontrar uma saída de esquerda para a crise do governo de Passos Coelho no verão de 2013, a “crise do irrevogável”, como ficou conhecida. Ou, ainda mais recentemente, o desafio para o diálogo e uma solução para o país feito por Catarina Martins durante o debate televisivo com António Costa.

Foi sempre por opção do próprio PS e não por falta de “parceiro” à esquerda que sucessivas direções do Partido Socialista se deslocaram e encostaram à direita. Não o reconhecer é uma mistificação do que foram os caminhos percorridos pelas esquerdas nos anos que já leva a democracia portuguesa.

Se a esquerda à esquerda do PS tivesse tido mais força política e eleitoral, a história política do país nos últimos 40 anos teria sido obviamente muito diferente

O que determina o modo como os partidos convivem e se relacionam entre si são as relações de força estabelecidas entre eles, fortemente definidas pelas respetivas expressões eleitorais. Se a esquerda à esquerda do PS tivesse tido mais força política e eleitoral, a história política do país nos últimos 40 anos teria sido obviamente muito diferente.

Reconhecer este papel central das relações de força não desvaloriza e muito menos anula a influência que as lideranças e as direções políticas exercem na definição das alianças. Sem dúvida que exercem essa influência mas ela é exercida e limitada pelo quadro concreto definido pela relação de forças em presença.

António Costa respondeu afirmativamente ao repto do BE lançado por Catarina Martins. É uma evidência incontestável. Podemos até admitir que, fosse outro o líder do PS, o acordo agora assinado não teria sequer sido tentado e muito menos existido. Mas a decisão de António Costa foi tomada num quadro político e eleitoral único, que até hoje nunca tinha ocorrido.

A singularidade dos resultados de 4 de outubro é que a sua aritmética tem três consequências políticas: o PSD e o CDS/PP não têm maioria, o CDS/PP não faz maioria com o PSD nem com o PS e o PS para fazer maioria precisa dos dois partidos à sua esquerda, o BE e o PCP, não basta apenas um. Repito, esta conjugação de resultados verifica-se pela primeira vez. E este original xadrez eleitoral inclui, ainda, um outro elemento não menos importante para as mudanças a que estamos a assistir: o grande crescimento eleitoral da esquerda à esquerda do PS, em especial do Bloco de Esquerda.

Foi sobre estes resultados singulares que António Costa e a direção do PS decidiram abrir-se ao diálogo com o BE, o PCP e o PEV, e recusar desta vez os convites para embarcar com a direita em novo bloco central ou simplesmente deixar a coligação governar. É uma atitude que rompe com a história do PS. É completamente inútil especular sobre as motivações de António Costa ou tentar adivinhar qual teria sido a decisão de António Costa se os votos tivessem sido outros. São dúvidas pertinentes mas só o tempo permitirá percebê-las.

Pela primeira vez, há condições para transformar uma maioria aritmética numa maioria política sem que o PS a inviabilize. Esta originalidade é potencialmente geradora de grandes mudanças na política portuguesa cuja antevisão deixa a direita entre o histérico e o colérico

Importante, hoje, é valorizar que, pela primeira vez, há condições para transformar uma maioria aritmética numa maioria política sem que o PS a inviabilize. Esta originalidade é potencialmente geradora de grandes mudanças na política portuguesa cuja antevisão deixa a direita entre o histérico e o colérico. Mudanças que dispensam que nos reclamemos vencedores como faz Paulo Fidalgo ou que confiemos em que, a partir de agora, será sempre assim como profetiza Rui Tavares.

Mas deixemos esse “depois”, as esperanças e os espinhos – que serão muitos - para um próximo texto. Fica prometido.

Artigo publicado no jornal “Público” de 20 de novembro de 2015

Sobre o/a autor(a)

Médico. Aderente do Bloco de Esquerda.
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