You are here

Memórias de tempos frios

Nasceu numa noite chuvosa de fevereiro, quando o frio faz doer os ossos e gela o pensamento.

Naquele tempo havia ainda bastantes crianças na aldeia e algumas até conseguiam frequentar a escola, antes de se dedicarem a tempo inteiro às tarefas que o campo obrigava. As meninas iam frequentemente trabalhar para as boas famílias da região e se tivessem sorte ficavam como criadas internas. Nessas situações, a alimentação melhorava um pouco, embora não fosse tão abundante como nas mesas que aprendiam a servir sem ousar encarar o patrão.

Maria não teve essa ventura. A mãe conseguiu sobreviver ao sexto e último parto, mas a resistência física nunca mais foi a mesma e alguém tinha de ajudar a cuidar dos irmãos mais novos. Chegou a concluir a terceira classe - possibilidade não oferecida aos rapazes que nasceram antes dela -, mas o tempo tornou-se precioso demais para se entreter com as letras e os números.

Os poucos momentos que tinha só para si preenchia-os a reler o único livro que possuía e a treinar a letra numa pequena ardósia ou mesmo na terra se não havia dinheiro para giz. Além disso tinha o coro da catequese, que se reunia aos sábados de manhã para preparar a missa dominical. O pai não era um grande entusiasta das coisas da Igreja, mas a mãe insistira, sobretudo após o pedido do diretor, um homem abastado e com muito prestígio na região pelas suas ligações à política e por ser um benfeitor. Eram sobejamente conhecidos os seus donativos à obra cristã.

Uma vez, pouco tempo depois de Maria completar 14 anos, ele pediu-lhe para ficar um pouco mais após o ensaio do grupo. Ela ia cantar um salmo pela primeira vez sozinha e não podia desafinar. Tinha de fazer boa figura na casa do Senhor. “O sol não te molestará de dia nem a lua de noite”, entoava ela quando sentiu umas mãos enormes e suadas a subir-lhe lentamente pelas pernas magras. Fechou os olhos e concentrou-se na letra, até o homem a encostar à parede e começar a masturbar-se enquanto lhe esfregava o sexo como se limpasse uma mancha de óleo ressequida.

Cerrou os punhos e mordeu os lábios vigorosamente para não chorar e correu porta fora quando se viu liberta. No dia seguinte subiu ao púlpito e cantou o salmo de olhos bem abertos e sem desentoar. Sentia um turbilhão de velas a queimar por dentro e fez um voto de silêncio à dor. No final da tarde pediu ao pai autorização para abandonar o coro e nem precisou de grandes explicações para se justificar. Afinal, o tempo não era suficiente para tantas tarefas e a mãe estava a ficar mais frágil e cansada.

Não contou a ninguém aquele episódio, nem mesmo ao homem com quem veio a casar anos depois. Ele tinha mais seis anos que ela e não era muito prezado pelas gentes daquela terra nortenha. A sua fama de comunista não lhe trazia muitas amizades naquele tempo, mas Maria não se importava. Com ele conheceu novos livros e o prazer de se sentir mulher. Amava-o e confiava nele, mesmo durante as suas ausências por motivos de força maior.

Uma noite ele regressou a cambalear, com o rosto coberto de sangue. Daniel tinha nascido havia apenas dois meses e Maria, sem qualquer pergunta, cuidou dos dois afetuosamente. Foram dias mais complicados que o habitual. As ajudas não lhe bateram à porta e os caldos enriqueceram-se muitas vezes com água e sal.

A vida era difícil por ali, ainda assim a revolta dava-lhe força para resistir e ajudar outras colegas na fábrica, onde começara a trabalhar aos 17 anos. Nem todas tinham o carinho à espera depois da jornada. O trabalho era árduo e seus os direitos e salários eram ainda mais débeis que os dos homens. Mas se escasseavam os bens a Maria, nunca o amor e a esperança desapareceram daquela casa, nem mesmo no dia em que levaram o companheiro e o mantiveram preso mais de um ano, até a Liberdade os visitar também.

Sobre o/a autor(a)

Trabalhadora da administração local
(...)