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Portugal: a rebeldia do bom aluno

Em Portugal, mais nada será como dantes. Um Presidente quis pôr no poder pela força o partido único da agenda neoliberal europeia: ao tentar passar em força, acelerou a “rebeldia” que o voto dos portugueses tornou possível. Artigo publicado em Mediapart

Este artigo foi publicado em francês em Mediapart e traduzido para português pela autora, para esquerda.net.

A direita portuguesa e europeia, Angela Merkel, Mariano Rajoy e o Presidente da Comissão Europeia deitaram foguetes demasiado cedo após as eleições legislativas do passado dia 4 de Outubro em Portugal. Com efeito, se a coligação de direita chegou à frente, perdeu a maioria absoluta, desmentindo assim a afirmação de Wolfgang Schaüble segundo a qual o povo português plebiscitou as políticas de austeridade levadas a cabo em Portugal nos últimos quatro anos.

Para além do facto de se terem saldado pela maior taxa de abstenção de toda a história da democracia portuguesa (43%), os resultados do escrutínio do passado dia 4 de Outubro em Portugal abriram uma brecha no edifício do bipartidarismo neste país. Por bipartidarismo, entendemos ao mesmo tempo um sistema de alternância no poder e de acordo tácito, permitindo perpetuar este último “entre si” no quadro de acordos governativos ou parlamentares.

É na base da referência a um tal cenário que a direita europeia e a Alemanha deitaram foguetes, habituadas como estavam a que a direita e os socialistas se apoiassem mutuamente em caso de necessidade. Mas era esquecer que após quatro anos de austeridade cega - atingindo em cheio um dos países mais pobres da UE - reconfigurações de relações de forças surgiriam, nomeadamente no seio do Partido Socialista a quem a esquerda da esquerda fortalecida com quase 20% dos votos (18.5%), estendeu a mão, declarando abertamente a sua rejeição de um novo governo de direita.

E foi este cenário de acordo entre a direita e o Partido Socialista, depressa desmentido pela realidade – com efeito o Partido Socialista abandonou rapidamente as negociações com a direita tendo-as prosseguido com a esquerda da esquerda - que o presidente da República portuguesa tentou forçar, voltando a nomear Pedro Passos Coelho primeiro ministro e encarregando-o de formar governo. Ao fazê-lo, tornou-se o mentor de um golpe de estado institucional da direita em Portugal.

O primeiro ato do golpe de Estado1 foi esta nomeação que em nome da estabilidade permitiu a um governo de direita minoritário (107 deputados) tomar o poder em Portugal, enquanto que a oposição dispondo de uma maioria absoluta (122 deputados) lhe havia assegurado reunir as condições necessárias para poder governar. Este primeiro ato do golpe de Estado é indissociável do segundo, a saber o apelo à insubmissão nas fileiras dos deputados do Partido socialista, para que, uma vez no poder, a direita aí pudesse permanecer2.

Mas é na justificação claramente enunciada da sua decisão, que se encontra o elemento fundamental caraterístico do golpe de Estado: era imperativo impedir uma solução governativa sustentada por partidos anti-europeístas, pondo em causa a pertença de Portugal à UE, ao euro, os compromissos internacionais do país, a sua pertença à Nato.

Como tão bem o sublinhou o editor do Daily Telegraph, Ambrose Evans-Pritchard na sua crónica do passado dia 23 de Outubro3 “esta é a primeira vez, desde a criação da União Monetária Europeia, que um Estado-membro toma a iniciativa de proibir explicitamente os partidos eurocéticos de formar governo, Portugal entrando desde logo, na sua opinião, numa zona “de águas políticas perigosas”.

Cometeríamos um erro, contudo, ao considerar que agindo desta forma, o Presidente português se limitou a excluir os partidos da esquerda da esquerda, ou seja o Bloco de esquerda (esquerda radical) e a CDU (Coligação do partido Comunista e dos Verdes), de uma solução governativa: com efeito, ao agir como agiu, Aníbal Cavaco Silva, arrogando-se os poderes exorbitantes dum golpista, balizou o Partido Socialista, impondo-lhe os limites no interior dos quais ele pode continuar a mover-se, ou seja os limites estreitos permitidos pelo quadro neoliberal europeu.

Em nenhum momento o Presidente, personagem da ditadura reciclado, como tantos outros, pela democracia “normalizada” portuguesa que sucedeu à Revolução, evocou a Constituição que deixou violar sem pestanejar pelo governo português durante estes quatro anos de dura austeridade sob o império do memorando da Troika; o povo português nunca foi referido, mas sim a UE, o pacto orçamental, os credores, os mercados, até o futuro Tratado Transatlântico e evidentemente o euro, fora do qual Portugal seria votado à catástrofe.

É difícil não traçar paralelos com a Grécia de tal forma o discurso do presidente faz pensar nas últimas campanhas eleitorais naquele país e, sobretudo, no período que precedeu o referendo em que se diabolizou o Syriza agitando o espantalho da saída do euro. E se na Grécia, um golpe foi perpetrado após o acesso do Syriza ao poder, em Portugal a tentativa de golpe ocorreu antes, visando esmagar no ovo qualquer veleidade de tomada do poder por partidos questionando o atual quadro neoliberal europeu.

O desenrolar dos acontecimentos no decurso das últimas semanas leva a crer que o medo acenado pelo presidente português não logrou efeitos. Na sua esmagadora maioria, o Partido Socialista validou o acordo de governo com os partidos da esquerda da esquerda4. Setenta medidas, incidindo nomeadamente sobre os salários, as reformas e o emprego, destinadas a diminuir o impacto da austeridade na população, puderam ser integradas no acordo5. Após a rejeição - praticamente adquirida – no dia 10 de novembro pelo parlamento português , do programa da coligação de direita, o Presidente da República dificilmente teria desculpa para não nomear primeiro ministro o líder dos socialistas, António Costa.

A tentativa de golpe do Presidente da República portuguesa, empreendida, senão com a cumplicidade, pelo menos com o consentimento da Europa, em relação à qual ele levou o servilismo para além dos limites da democracia, fracassou, pelo menos por enquanto. Graças ao voto deste povo esmagado por anos de austeridade, empobrecimento, desemprego e emigração em massa, tantas vezes exibido como o bom aluno da Troika, o edifício do bipartidarismo, ciosamente guardado pelos donos de Portugal desde há quarenta anos, fendeu-se e uma aliança histórica emergiu em Portugal. Quanto tempo irá durar?

É uma pergunta para a qual não há resposta, já que a imprevisibilidade é para a democracia o que o seu contrário é para a ditadura. Mas uma coisa é certa: em Portugal mais nada será como dantes. Um Presidente quis colocar no poder pela força o partido único da agenda neoliberal europeu: mas ao tentar passar em força, acelerou a “rebeldia” que o voto dos portugueses havia tornado possível, incitou ainda mais à constituição de uma aliança anti-austeridade que até aí parecia pouco provável e, desse modo, suscitou um debate democrático sem precedente há quarenta anos na sociedade portuguesa.


1 Nomeação que, diga-se de passagem, não tem nada de formalmente inconstitucional, já que o artigo 187° - 1° da Constituição estipula que o Presidente da República nomeia o primeiro ministro tendo em conta os resultados das eleições. É o contexto no qual esta nomeação foi feita que se aparenta a uma passagem em força e, sobretudo, o seu fundamento, claramente inconstitucional.

2 Com efeito, o governo responde perante o parlamento que tem o poder de aprovar ou rejeitar o seu programa.

4 Trata-se de um programa de incidência parlamentar, ou seja os partidos à esquerda do PS comprometem-se a apoiar o governo minoritário do partido Socialista, na Assembleia, e a não votar a favor de moções de censura apresentadas pela direita.

5 De facto foram firmados três acordos diferentes pelo partido Socialista com os partidos à sua esquerda (Bloco de Esquerda, Partido Comunista e Partido Os Verdes). Designamos de “acordo”, o resultado global das medidas assim negociadas

Sobre o/a autor(a)

Doutorada em Ciências de Gestão pela Universidade de Paris I – Sorbonne; ensinou Economia portuguesa na Universidade de Paris IV -Sorbonne e Economia e Gestão na Universidade de Paris III – Sorbonne Nouvelle
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