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Para o que não é eterno

Termina a agonia da imutabilidade do arco da governação e dos seus intérpretes residentes. O ciclo político do "bicho-papão" comunista acaba hoje.

Destruindo o mito da eternidade, hoje termina o ciclo político mais bem alimentado no Portugal que se assomou democrático após o 25 de Abril. Um longo caminho com mais de 41 anos, quatro décadas de contos infantis, elaborados com carinho, sobre o inferno da Esquerda unida que - com comunistas ou revolucionários no poder ou perto dele - não tardaria a comer crianças ao pequeno-almoço no primeiro vislumbre dos amanhãs que cantam numa praça de touros perto de si. Termina a agonia da imutabilidade do arco da governação e dos seus intérpretes residentes. O ciclo político do "bicho-papão" comunista acaba hoje.

Como é obvio, o mito do "bicho-papão" só poderia acabar com a Esquerda unida. Unida por incidência e no poder por consequência, decorrentemente e contra a deriva mais neoliberal de que há memória num PSD que, de tanto se encostar a Portas, acabou por fechar as portas da percepção de que poderiam seguir juntos sem que a Esquerda finalmente se unisse. Acende-se o fogo. Sente-se que para muitos dos "irrevogáveis", não pode haver uma união boa que não uma união à Direita, por mais fraca, cínica ou circunstancial que possa ser a sua génese ou exercício. Uma questão de honra que confundem com carácter. Ou de tradição, dirão os conservadores-cristãos. Uma verdadeira união à Esquerda não é possível nem equacionável por aqueles que sempre defenderam a superioridade moral da Direita para gerar entendimentos. Só com a mão direita se podiam assinar acordos, plásticos ou de ferro, sendo que todos valiam se o negócio fosse estrategicamente sólido. Para esses, a Esquerda esteve sempre condenada à fatalidade da desinteligência, até porque a história até sustentava, em parte, esse discurso sectário. Também por isso, este é um dia em que a democracia faz história. A Direita descobre, no Parlamento, que é nesta casa que as famílias da Esquerda se entendem. A Direita assusta-se porque dentro da casa nunca concebeu este conceito de família.

Embora alguns se finjam despercebidos, todos já perceberam que não há acordos menores por se revestirem de incidência parlamentar. Importante é que sejam sustentados por verdadeira vontade política exercida no tempo. E basta ter memória, relembrando o primeiro acordo de incidência parlamentar que... a Direita rompeu em 1978. Acabou célere esse meio ano de mãos dadas entre o PS e CDS. Quando Sá Carneiro aliciou Freitas de Amaral para a Aliança Democrática, deixando Mário Soares na mão de Ramalho Eanes, a circunstância fez o seu percurso. Se em 1978 era a democracia a funcionar, já em 2015 é a Direita a abanar; se antes era a normalidade, agora é a fatalidade. Uma questão de carácter, sobranceria e esquecimento histórico. No passado, pela mão daqueles que nos dias de hoje anunciam as diferenças entre PS/BE/PCP como uma desgraça antecipada e moribunda no prazo de um ou dois anos, seis meses foram mais do que suficientes para sepultar o primeiro acordo de incidência parlamentar da nossa história democrática.

A estabilidade e o rigor, palavras na ordem do dia agitadas pela Direita que passará à Oposição. Porque pouco do que existe é eterno, não se poderá saber com rigor quanto pode durar um Governo de maioria relativa do PS com um acordo de incidência parlamentar do BE e PCP, como não se soube com rigor como resistiu a estabilidade de um Governo de maioria absoluta do PSD/CDS com o "irrevogável" Paulo Portas. Sabe-se que, tendo em conta a competência técnica das negociações à Esquerda, cada dia terá sido válido e vincado o acordo, fortalecido, até à sua conclusão. Porque pouco do que existe é eterno, ao mesmo tempo que a Esquerda vai perdendo o seu preconceito moral de superioridade cultural face à Direita, a Direita vai crescendo no seu complexo imoral de superioridade económica face à Esquerda. Porque pouco do que existe é eterno, talvez ainda sejamos testemunhas de um tempo em que a história contará o conto de um bicho-papão neoliberal. Aquele que enfiou milhões sem fim numa bolha especulativa, se alimentou de adultos por altura da ceia e promoveu a delinquência nas mais altas esferas do sistema financeiro e político. As crianças saberão o que foi o BPN. Em bom rigor.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 10 de novembro de 2015

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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