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A desgraça que aí vem!...

Nas urnas o que indelicadamente o povo disse, foi: Saiam da frente, desamparem a loja!

No passado dia 4 de outubro, tirei o meu fato domingueiro do guarda-fatos, dei-lhe umas sacudidelas para aliviar o cheiro a naftalina e, como já tive oportunidade de escrever, fui cumprir a minha obrigação de votar na coligação.

Apercebi-me de que as sacudidelas do fato não tiveram grande efeito. Na fila, atrás de mim estava uma criança de uns 3 anitos que acompanhava uma eleitora e… sabe-se como são indiscretas as crianças…; e não chegando já o embaraço na fila, onde me apercebi de risinhos estúpidos à socapa, reparei numa escrutinadora que, na mesa, tapou discretamente o nariz...

Por mim não havia cá eleições, cá nada! O governo estava governando, fazendo o seu melhor, era deixá-lo continuar. Com a Europa à espera do orçamento, este não podia muito bem ser a cópia do do ano passado?! Agora, por causa das eleições, não há meio de resolverem o impasse em que estamos relativamente à formação do governo! E a Europa à espera!...

Ouvi dizer que foi o CDS que inventou a feliz expressão "arco da governação". Vejam só que dizem por aí que foi a maneira de o CDS, em bicos de pés, reivindicar um lugar num governo, seja ele do PSD, seja do PS, ou de outro, que interessa?

O arco da governação é muito justamente composto por 3 partidos, o PS, o PSD e o CDS. Como a feliz expressão indica – "governação" é uma palavra derivada de "governo" –, o governo tem de ser formado exclusivamente com base nestes 3 partidos. Está escrito nas estrelas.

Os outros partidos, em particular o BE e o PCP, sabe-se que têm demasiados defeitos. Nos dias de hoje, com as devidas diferenças, ainda falam em igualdade, justiça social, direitos dos trabalhadores, salários dignos, cumprimento dos horários de trabalho... São contra os despedimentos e atrevem-se mesmo a encher a boca com direitos completamente obsoletos: ele é o direito à saúde, ele é o direito à educação, à habitação,... tudo coisas, como se sabe, completamente ultrapassadas no tempo. Atrevem-se à ridicularia de, em tempos da austeridade divinamente decretada, garantir que ele há dinheiro, o que está é mal distribuído. E mais, têm a ousadia de pôr em causa coisas como os offshores, coisas como aquilo a que chamam grandes fortunas dos banqueiros, num autêntico atentado a uns dinheiritos amealhados por pessoas sérias, à custa de muito suor do rosto, que outra coisa não têm mostrado se não que trabalham exclusivamente a pensar nos superiores interesses da Nação. A juntar a todos estes defeitos, os avisados comentadores não esquecem os "ismos" que constituem o lastro que acompanhará até ao fim dos séculos cada um desses partidos. O BE e o PCP bem podiam ficar quietinhos, quiçá amuados, agitando cada um a sua bandeirinha, à espera, sentados, dos amanhãs que cantam. "O BE e o PCP são só partidos de protesto!" decretava ainda há pouco, ao mesmo tempo que lamentava, uma mole imensa de comentadores merecidamente refastelados no aconchego do arco da governação.

Mas algo aconteceu que, de um dia para o outro, os mesmos comentadores passaram a queixar-se e com razão da proatividade do BE e do PCP. Que raio de ideia essa a de deixarem de ser só partidos de protesto!? Mais, todos aqueles "ismos" e outras coisas feias de que eram acusados passaram a ser virtudes. Abre-se a televisão e aí está uma mesa redonda toda ela a elogiar as capacidades e a peculiaridade do BE e a firmeza do PCP, este considerado mesmo como único e autêntico na Europa. Claro que, com tanta pureza e tantas virtudes, depressa se conclui, com a maior das justezas, que tanto PCP como BE não servem para as exigências dos tempos atuais, que o mesmo é dizer, não servem para fazer parte de nenhum arco da governação.

A bem da Nação, o Sr. Presidente da República – que pautou o seu mandato por um quase constante silêncio de ouro a abençoar a bem sucedida governação dos últimos anos – estava, pois, na altura de acordar do seu estado de sábia hibernação. Com enorme sentido de estado, a fazer lembrar as saudosas conversas em família de há quarenta e poucos anos atrás, discursou para avisar a Nação. Só quem não tem juízo pode dizer que o Sr. Presidente da República deu um tiro no pé, ou pior, na única coligação capaz de continuar a servir Portugal, por supostamente ter conseguido enraivecer a meia dúzia de socialistas porventura hesitantes quanto a desempenhar o papel de “queijos limianos”.

Os políticos e comentadores que privilegiaram muito justamente a estabilidade governativa, a pressa da apresentação do orçamento porque "se não os mercados...", "se não a Europa...", defendem agora com toda a coerência que se queimem todas as etapas. O Sr. Presidente da República, garante da Constituição, previu sabiamente todo este imbróglio. Até trabalhou no dia 5 de outubro – e fez bem, até porque este governo já acabou com a mama do feriado… –, a refletir na melhor solução para o País. 

Como é tradição, indigitou para primeiro-ministro o líder do partido mais votado. Este trata de procurar ministros, secretários, subsecretários, etc... Ora isso leva tempo. Como é natural, toda esta gente desinteressada não sonhava sequer com um lugar no governo e há de haver quem resista: "Eu não me sinto à altura das responsabilidades" e mais isto e mais aquilo, para invariavelmente acabar num "Bom, para servir o País, eu sempre aceito o desafio!"

E tudo para quê, se ao fim de meia dúzia de dias uma maioria de desmancha-prazeres já prometeu botá-los dali para fora?

Nova corrida, nova viagem: o Sr. Presidente da República chama o líder do segundo partido mais votado, pergunta-lhe seis vezes e mais uma última, esta com semblante carregado, olhos nos olhos, se garante que não vai acontecer a maldade que fizeram ao anterior. Segue-se nova procura de ministros, secretários, subsecretários... Diz-se que têm de ser outros, uma maçada!... E a Europa à espera!

Nada disto tinha acontecido se nas urnas o povo não tivesse feito o que fez, mal agradecido relativamente a todo o bem que lhe tinha proporcionado o governo.

Como bem avisou o Sr. Presidente da República, com um governo constituído fora do arco da governação, está aí para vir a desgraça. Adivinha-se que os portugueses vão ser fortemente atingidos por cortes de salários e pensões, despedimentos, fecho de tribunais, de escolas e de centros de saúde, desemprego como nunca visto, a ponto de se prever que o próximo primeiro-ministro aponte a porta de saída da emigração para os jovens, enquanto abre a porta de entrada a 3 senhores bem-postos, com ar sério, transportando umas pastas cheias de documentos. Como são três é natural que ao grupo se venha a chamar troica, não sei... Adivinha-se a descoberta de escândalos de corrupção nas mais variadas áreas. Não admira que haja conceituados bancos a falir com custos para os contribuintes e que estes tenham ainda de pagar por causa de negócios fraudulentos como... sei lá,... por exemplo,... submarinos. Submarinos foi o que me veio à ideia não sei por que carga de água, mas pode muito bem ser outro tipo de barcos ou até comboios ou aviões, sei lá!... 

Com a situação tão catastrófica a que vamos chegar não me admira que chegue o dia em que, porca miséria!, as agências de rating acabem por nos meter no lixo...

Mas o povo não escarmenta, nas urnas o que indelicadamente o povo disse, foi: Saiam da frente, desamparem a loja!

Agora que o mal está feito, e só porque a Europa continua à espera, atrevo-me a rogar ao Dr. Passos, ao Dr. Portas e ao Prof. Cavaco, não que saiam da frente mas, muito delicadamente:

Desviem-se um bocadinho!

Sobre o/a autor(a)

Professor aposentado
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