“Desobedecer à praxe”: a crítica da obediência universitária

23 de October 2015 - 0:04

O esquerda.net publica a introdução de “Desobedecer à Praxe”, o livro lançado esta quinta-feira por Bruno Moraes Cabral e João Mineiro. Os autores resumem a história da praxe universitária em Portugal, desmontam os argumentos que legitima esta prática marcada pela obediência, hirarquia e autoridade e defendem a integração dos estudantes com iniciativas assentes na igualdade e respeito mútuo.

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Desobedecer à Praxe, de Bruno Moraes Cabral e João Mineiro. Ed. Deriva, Cadernos Desobedientes

Introdução ao livro "Desobedecer à Praxe", de Bruno Moraes Cabral e João Mineiro

A praxe é uma das atividades que conhecemos em que a obediência é mais cultivada. Será assim irónico que ela aconteça privilegiadamente no seio de uma instituição onde se esperava que, pelo contrário, mais fosse estimulado o culto da crítica e da liberdade: a Universidade.

A praxe não acontece apenas nos primeiros dias de aulas, ocupando para muitos uma parte significativa da vida académica ao longo de todo o ano. E também não acontece apenas nas universidades. Já somos confrontados com ela nas ruas e nas praças das cidades, nos bares, nas residências, nos transportes públicos. Está a aparecer no ensino secundário e os seus princípios até já começam a ser exportados por estudantes portugueses do Programa Erasmus para países onde ela nunca existiu.

Hoje a praxe é largamente maioritária na comunidade estudantil. Mas não foi sempre assim. No século XVIII esteve suspensa, na I República foi abolida, durante os movimentos estudantis dos anos 60 foi abandonada, nos anos 70 era inexistente e, durante grande parte dos anos 90, foi pouco relevante em muitas universidades. Ainda assim, a praxe que hoje se tornou hegemónica nasceu da sua reorganização nos anos 80,primeiro em Coimbra e alastrando-se depois ao conjunto do país, acompanhada deum conjunto de mudanças: aumento da frequência do ensino superior, diversificação das instituições, surgimento de institutos privados e um quadro geral de retração das dinâmicas de politização juvenil das décadas anteriores e de hegemonia neoliberal.

Para muitos, a praxe trata-se de uma simples diversão estudantil. Para outros é mesmo um marco importante para determinar uma nova fase de vida, e até uma aprendizagem para toda a vida. Serão as praxes o que muitas vezes parecem ao longe, meras brincadeiras burlescas e inofensivas? Constituem, pelo menos em parte,um sistema de integração legítimo e eficaz? O que é afinal a praxe académica?

O debate público em torno da praxe tem surgido sobretudo em contextos dramáticos, quando aconteceram mortes e acidentes ou quando algumas vítimas tiveram coragem de denunciar os abusos. Fora estes momentos, o assunto pouco ou nada tem sido debatido. Mas muitas das práticas que configurariam um crime num contexto “normal”, isto é, fora do ambiente tutelado pela praxe, são recorrentes e legitimadas no seu espaço

O debate público em torno da praxe tem surgido sobretudo em contextos dramáticos, quando aconteceram mortes e acidentes ou quando algumas vítimas tiveram coragem de denunciar os abusos. Fora estes momentos, o assunto pouco ou nada tem sido debatido. Mas muitas das práticas que configurariam um crime num contexto “normal”, isto é, fora do ambiente tutelado pela praxe, são recorrentes e legitimadas no seu espaço. Existe um senso comum que menoriza as agressões no contexto de praxe e ao mesmo tempo uma dificuldade especial em denunciar os abusos por parte das vítimas. E mesmo quando a violência é reconhecida, faltam medidas para limitar as agressões e os abusos. Nos sucessivos governos tem havido declarações de boas intenções e condenações das praxes violentas, mas poucas ações concretas têm sido levadas a cabo. A proibição tem sido uma via descartada pelo conjunto dos partidos, contrariamente ao que sucedeu em alguns países onde a violência crescente impôs a criminalização destas práticas. Os motivos para não legislar são vários, entre os quais a ideia de que é uma questão cultural, de que uma intervenção estatal pode ser contra-producente, de quea praxe deve ser sobretudo objeto de uma ação moralizadora e preventiva das universidades e da ação dos próprios estudantes para encontrar alternativas. Mas existirão de facto experiências alternativas para receber os novos alunos?

Nos debates pelas universidades onde se rodou o documentário PRAXIS, estreado e premiado em 2011 no Doclisboa, e em vários encontros e debates do movimento estudantil, verificámos sempre uma espécie de negação coletiva, como se a praxe nunca fosse exatamente como mostram as imagens e as denúncias e como se quem não participa nelas não as pudesse compreender, discutir e criticar.

Este texto parte de um sentimento e de uma perspetiva opostos. Para nós, a obediência à praxe e à sua hegemonia no ensino superior tem de ser submetida a escrutínio crítico. Primeiro porque as universidades devem ser espaços públicos de cultivo da emancipação e não da obediência cega;segundo,porque o combate pela emancipação dos indivíduos e dos grupos é um assunto com o qual, em sociedade, temos todos a obrigação de nos preocupar.

Este texto nasce, assim, de duas mãos: a de um realizador que percorreu o país a filmar imagens da praxe que deram origem ao documentário PRAXIS; e a de um sociólogo e dirigente estudantil que nos últimos cinco anos tentou desobedecer à praxe no seio de um movimento estudantil onde ela é hegemónica. Mas nasce também de uma vontade comum em fazer da universidade – e por isso da sociedade – um espaço preenchido de liberdade, conhecimento e crítica, e não de obediência, humilhação e violência.

Este livro divide-se em três partes: primeiro, discutiremos os oito principais argumentos que legitimam a praxe, propondo-lhes contra-argumentos que lhes façam frente; segundo, traçaremos uma história concisa da origem e dos percursos da praxe em Portugal, bem como dos momentos desobedientes que nem sempre nessa história são revelados; e em terceiro, analisaremos alguns exemplos de desobediência à praxe, enunciando caminhos alternativos de integração e de vivência coletiva na universidade.


Bruno Moraes Cabral é realizador e o seu documentário “Praxis” foi premiado em 2011 no Doclisboa, tendo servido de ponto de partida para o debate sobre as praxes em várias universidades nos últimos anos.

João Mineiro é sociólogo e pertenceu à direção da Associação de Estudantes do ISCTE entre 2010 e 2015.

Veja aqui como comprar o livro

Índice do livro "Desobedecer à praxe":

1.Razões para desobedecer à praxe

À praxe só vai quem quer? Desobedecer ao falso consentimento

Só pode falar da praxe quem a viveu? Desobedecer à autoridade

A praxe não é financiada? Desobedecer à legitimação

Na praxe somos todos iguais? Desobedecer à elitização e à uniformização

A praxe é um ensinamento para a vida? Desobedecer à hierarquia

A praxe não humilha? Desobedecer às discriminações

Depois da praxe só ficam coisas boas? Desobedecer contando a história toda

Aqui a praxe é diferente? Desobedecer à negação coletiva

2. Breve história da praxe e dos seus momentos desobedientes

3. Desobedecer na prática, passar da crítica à ação

Quebrar o ciclo e convidar outros para a ação

Virar o debate ao contrário, recusar o binarismo pró-praxe/anti-praxe

Resgatar o debate nas universidades, politécnicos e no meio estudantil

Terminar com o sistema de legitimação e complacências

Alternativas à praxe: o maior desafio para quem não quer ficar a assistir

Agitação, visibilidade e ação direta: o que nos ensina a experiência do M.A.T.A?

Devem as universidades tolerar as práticas da praxe no campus?

E se fossemos além de campanhas contra as praxes violentas?

Regras, regulamentos e leis: o que podemos fazer com eles?

Anexos

Cronologia dos casos de violência recente na praxe académica que vieram a público

Para saber mais