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A persistência da memória

Acordou sobressaltada. Olhou e não reconheceu o quarto. A cama era mais estreita, a réplica barata do quadro de Dali transformara-se na imagem de uma menina rodeada por anjos e a estante dera lugar à escrivaninha de madeira maciça antiga, com muitas gavetinhas, onde outrora guardava segredos e pétalas secas. No chão jazia um livro de Júlio Verne. A janela estava aberta e não tardava a amanhecer.

Fechou os olhos com força. Com tanta força quanto a que achou necessária para que toda aquela fantasia se desvanecesse, para que rapidamente o despertador anunciasse mais um dia de trabalho e deixou-se ficar por alguns instantes, que lhe pareceram horas. Arriscou e lentamente voltou a abrir os olhos, mas continuava tudo ali. O espelho alto de ferro preto forjado, os cortinados rosa nude e até os velhos patins junto à porta, ainda com a mancha de lama que nunca saíra, desde o dia em que ela e a Rita, no final das férias, teimaram em organizar um concurso de patinagem à chuva. De repente sentiu o cheiro da terra molhada e dos marmelos que pela manhã ajudara a colher. Lembrou-se que em breve voltaria à escola. O Verão estava a terminar e as primeiras folhas acastanhadas começavam a decorar o alpendre.

Helena adorava aquela altura do ano, quando o cheiro dos livros novos se misturava com o das compotas acabadas de fazer. A marmelada com travo a canela ou mesmo o doce de abóbora com pedaços de noz pareciam-lhe as melhores iguarias do mundo quando chegava da escola nos primeiros dias frios de Outono. Nem precisava de pão, à colherada, diretamente do frasco, sabia-lhe bem melhor, ainda que a mãe discordasse.

Obviamente não desprezava as outras estações do ano. Desde o tempo das cerejas aos piqueniques numa tarde de sol, tudo era vivido como se da primeira vez se tratasse. Até nos dias de chuva intensa inventava facilmente novas ocupações, com a Rita, a Margarida e o João, os vizinhos mais próximos e companheiros de muitas façanhas. E se estava só, o que por vezes apreciava, deixava-se ficar no quarto e escrevia as suas aventuras ou deliciava-se a ler as de outros. Quantas vezes tinha acompanhado Alice nas suas peripécias do outro lado do espelho? Ou mesmo Dorothy, pelas Terras de Oz. No entanto, o seu herói preferido era Oliver Twist. Com ele chorara e rira, vezes sem conta. O pai, professor de Português no liceu, tinha uma pequena valiosa biblioteca lá casa.

Uma altura, inspirada na obra de Condessa de Ségur decidiu preparar um lanche para bonecas e amigos. Demorou mais de uma semana a convencer os pais, mas acabou por conseguir envolver todos na sua ideia. O João e a Margarida ajudaram a fazer os convites na escola, a mãe fez um bolo de laranja que decorou com chocolate e guloseimas, enquanto ela e Rita, sob a orientação do pai, encenaram um dos episódios d’ Os Desastres de Sofia. Não houve bonecas de cera derretidas e o chá não foi de giz com água do cão, mas todos se divertiram imenso ao verem que Chico, o pequeno gato malhado, aproveitou um momento de jogos e cantorias para se deliciar com resto do bolo ainda na mesa.

O despertador persistia em não tocar. Encheu-se de coragem e foi até à escrivaninha, um presente da avó paterna no dia que entrou para a escola. Abriu uma gaveta e logo outra e ainda outra. Papéis, recortes de jornal, cartas e canetas deixadas ao acaso. O pequeno álbum de fotografias anunciava novas memórias. Ao abrir estava ela, sorridente com as suas longas tranças, os primos de Lisboa e avó Anastácia. Que saudades dos seus bolinhos de manteiga, quase sempre acompanhados de limonada, no Verão, ou de chá de erva-cidreira se fazia frio. Ao virar da página estava a Rita, no dia em que fez oito anos, e depois o pai, quando a levara à pesca pela primeira vez. Helena sabia que a seguir veria a fotografia da mãe no casamento da prima Isabel. O vestido era comprido, de um estampado em tons pastel. Recordava bem essa data, mas preferiu não ver a imagem. Rodou a chave da quarta gaveta e lá estava o seu diário, de capa azul-marinho, onde constam relatos de festas de aniversário, do primeiro beijo, junto da grande tília à entrada da escola primária, e de outros tantos momentos dignos de ficar para a História.

Leu rapidamente alguns deles e focou-se na última página escrita.

“Querido diário,

O céu está estrelado. Da minha janela vejo a lua, redonda, linda. Uma brisa entra pela janela, mas é quente, muito quente. Amanhã estará outro dia de calor. Ainda bem, porque o João convidou-me para um passeio de bicicleta, logo a seguir ao almoço. A Rita foi passar uns dias ao Porto, com os avós, e a Margarida acompanhou a mãe num passeio ao Alentejo. Por isso tenho passado mais tempo apenas com o João. Ontem não trocámos cartas, mas hoje estivemos a tarde toda juntos. Jogámos à batalha naval e ao ludo. Na despedida voltou a dar-me um beijo, na parte de trás de casa, para a mamã não ver. Ele vai escolher Inglês, como eu, e há boas hipóteses de ficarmos na mesma turma.

Também gostava que a Rita ficasse. É a minha melhor amiga, como sabes, e apesar de o coração bater forte quando estou sozinha com o João, sinto muitas saudades dela.

O meu pai, ao jantar, disse-me que este Verão não vamos de férias para Lisboa. Vai comprar um carro novo e o dinheiro não dá para tudo. Tenho pena de não ir à praia, mas ele já prometeu que este ano iremos nós lá passar o Natal. Talvez não seja tão divertido passar o Natal num apartamento, mas o importante é que vamos estar todos juntos. O André faz-me sempre rir com as suas histórias e o Ricardo poderá tocar guitarra. Quando vêm para cá, a tia Lurdes nunca o deixa trazer a guitarra. Diz que não há espaço no carro para tantas coisas.

Hoje falei também ao João sobre A Volta ao Mundo em 80 Dias, que estou a ler. Disse que lho emprestava quando terminar, mas ele gosta mesmo é das aventuras d’ Os Cinco. Esses lê muito rápido, mas outros acha mais enfadonhos e dá-lhe o sono. É engraçado, por mim ficava a noite toda a ler, mas a minha mãe quando vai dormir passa sempre pelo quarto para eu apagar a luz.

Termino agora, mas depois conto-te como foi o nosso passeio de bicicleta. O João disse que tem uma surpresa para mim. Estou muito curiosa. E feliz.

4 de Agosto de 1984”

Helena sentiu novamente o calor no corpo. Naquela noite terminara a sua infância. Crescera ali, dera os primeiros passos naquele chão, colhera frutas com pai, fizera bolos com a avó e adormecera muitas vezes embalada com o canto da mãe. Aquela casa, aquele imenso jardim eram a alma de toda a sua existência. Tudo se esvaneceu num ápice, entre as chamas terrivelmente belas e violentas.

O fogo é a putrefação do espírito. Tira o que quer sem remorsos, sem piedade. O que toca jamais fica igual, para sempre. Por mais que se extinga, com o passar dos anos continua a arder, por dentro. Helena viu-se novamente nos braços de um bombeiro. Tinha calor, muito calor. Quis a mão da mãe ou o abraço do pai. Quis acreditar que no dia seguinte iria passear de bicicleta com o João. Quis escrever o que sentia no pequeno diário azul-marinho. Quis levar Rita para Lisboa. Nada foi como pediu. Nada voltou a ser ali.

Sobre o/a autor(a)

Trabalhadora da administração local
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