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Tunísia: O que premeia o Nobel?

Há quem veja na atribuição do Prémio Nobel a consagração das “soluções consensuais” tipicamente tunisinas. Mas esta alegria esconde mal as violações tão flagrantes como regulares ao texto da Constituição bem como das liberdades públicas. Artigo de Hèla Yousfi e Choukri Hmed.
Foto Magharebia/Flickr

A nomeação do Diálogo nacional tunisino, dirigido por um quarteto que junta a poderosa organização sindical União Geral Tunisina do Trabalho (UGTT), a União Tunisina da Indústria, Comércio e Artesanato (UTICA, associação patronal), a Liga Tunisina dos Direitos do Homem (LTDH) e a Ordem dos Advogados ao Prémio Nobel da Paz em 2015 provocou, na Tunísia como no estrangeiro, um coro de elogios e autossatisfação.

Recordemos os factos. Após as eleições de outubro de 2011, que levaram o partido islamista Ennahda a exercer o poder ao lado de outros dois partidos (a troika), a Assembleia nacional constituinte e o governo foram o alvo de críticas cada vez mais duras. Na altura em que no Egito do marechal Al-Sissi se liquidava a experiência da alternância, na Tunísia a multiplicação dos assassinatos políticos e a incúria do governo alimentaram uma contestação sem precedentes, fazendo vacilar a legitimidade da troika.

Por iniciativa de uma Frente de salvação nacional composta pelo partido Nidaa Tounes (nebulosa conservadora composta em boa parte por quadros ao antigo regime) e pela Frente Popular (extrema-esquerda), o sit-in do Bardo [centro da capital] exigiu no verão de 2013 a queda do governo e a dissolução da Assembleia.

Três grupos, cada um reivindicando uma forma de legitimidade, confrontaram-se entre si:
– os islamistas e seus aliados, reforçados pela legitimidade eleitoral;
– as organizações contestatárias e os movimentos sociais, que se reclamavam da legitimidade revolucionária;
– os caciques do antigo regime e uma parte da esquerda partidária, que invocavam a legitimidade consensual para sair da crise e regressar ao poder.

Foi esta última que prevaleceu. Neste contexto de crise política, a UGTT conseguiu relançar a sua iniciativa do “diálogo nacional” proposta em junho de 2012, mas desta vez aliando-se à associação patronal UTICA e a duas organizações históricas da sociedade civil, obtendo assim um reconhecimento local e internacional para cumprir o papel de artesão do consenso nacional.

Apesar das críticas que apontavam um dispositivo em concorrência com as frágeis instituições saídas de eleições, este neutralizou, com a colaboração de todas as forças políticas e sociais do país, o risco de dissolução da Assembleia Constituinte (única instância resultante da vontade do povo). Esta operação do quarteto conduziu à adoção da Constituição e conseguiu afastar o espectro da guerra civil.

Ao mesmo tempo, contribuiu a uma partilha do poder entre os dois adversários políticos que são as elites vindas do anterior regime e os islamistas, o que explica em parte a sua atual aliança no governo.
Este compromisso foi então encarado por uma grande parte dos tunisinos como a  negação da sua escolha expressa nas urnas e como o desvio das reivindicações económicas e sociais, ainda no centro do processo revolucionário.

O presidente da República, Béji Caïd Essebsi, e os seus aficionados têm bons motivos para ver na atribuição do Prémio Nobel a consagração das “soluções consensuais” tipicamente tunisinas: esta alegria esconde mal as violações tão flagrantes como  regulares ao texto da Constituição bem como das liberdades públicas.

A proclamação do estado de emergência, levantado muito recentemente, autorizou o regresso de uma gestão securitária dos movimentos sociais que se traduz pelo aumento dos casos de torturas e maus tratos. Ela veio consolidar o crescimento sem precedentes da corrupção no seio do Ministério do Interior, atestada pelas ONG, mesmo que a reforma deste “Estado dentro do Estado” constitua uma das reivindicações centrais da revolução de 17 de dezembro de 2010.

Desta forma, a recente lei sobre o terrorismo viola flagrantemente os direitos do cidadão, enquanto o projeto de lei sobre a “reconciliação económica nacional” visa liquidar as instituições e dispositivos legais da justiça transitória, ao branquear os homens de negócios e os dirigentes acusados de corrupção.

A proclamação do estado de emergência, levantado muito recentemente, autorizou o regresso de uma gestão securitária dos movimentos sociais que se traduz pelo aumento dos casos de torturas e maus tratos. Ela veio consolidar o crescimento sem precedentes da corrupção no seio do Ministério do Interior, atestada pelas ONG, mesmo que a reforma deste “Estado dentro do Estado” constitua uma das reivindicações centrais da revolução de 17 de dezembro de 2010.

Por último, esta viragem securitária não faz esquecer os fracos progressos sociais e económicos do governo atual. Nunca existiu uma rotura com o modelo defendido por Ben Ali.

A celebração pelo Prémio Nobel do papel político da aliança “dos operários e dos patrões” que representa a colaboração entre a UGTT e a UTICA no diálogo nacional soa como um aviso dirigido a todos os grupos das classes populares e médias impelidas pela esperança de uma vida mais justa e digna.

Mesmo assim, enquanto a UTICS sempre representou uma rede de homens de negócios ao serviço do poder, a UGTT constitui o único espaço de ação coletiva que soube, mesmo assim, dar corpo aos progressos sociais.

Ainda que depois de 2011 o seu papel político tenha destacado a sua missão social, a organização sindical está entalada entre

– uma ala que defende a negociação com as elites económicas e políticas em troca de alguns aumentos salariais

– uma ala, mais radical, que pressiona para que a organização centre a sua atividade sobre questões sociais de dimensão nacional como o desemprego, a luta contra a privatização dos serviços públicos prevista no tratado de livre-comércio com a UE, e o respeito pelos direitos laborais.

Mas aquelas e aqueles que estiveram na origem da revolução da dignidade (e não, como estabelece o comité de atribuição do Prémio Nobel, a “revolução de jasmim”) ainda não disseram a sua última palavra.


Artigo publicado no portal Europe Solidaire Sans Frontières.

Hèla Yousfi é professora associada da universidade de Paris-Dauphine. Autora de “L’UGTT, une passion tunisienne, enquête sur les syndicalistes en révolution (2011-2014)”m Editions Karthala (2015).

Choukri Hmed é professor associado da universidade de Paris-Dauphine.

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