O artigo de opinião de José Pacheco Pereira (JPP) ( Público, 02/10/2015) tem a virtude de trazer a lume uma problemática cíclica entre a inteligentsia europeia: afinal, onde andam e o que fazem os intelectuais em tempo de crise? Tem esse mérito, mas também afirma muito de discutível e anacrónico face aos regimes técnicos e políticos da contemporaneidade.
Comecemos por tentar responder à pergunta de JPP: Continua a existir o intelectual orgânico como modelo? A resposta é inequívoca e é negativa, pois os intelectuais com potencial revolucionário não pertencem já a uma única classe social à nascença, cada um nasce em berço próprio. Ainda que geneticamente se possa nascer em berços de famílias operárias, a democracia económica do Estado social trouxe alguma mobilidade social ascendente e a formação de uma classe média de onde sai de facto grande parte dos intelectuais, tal como dos artistas ou dos desportistas. É claro que esta função social redistributiva está hoje em risco de extinção devidos aos ataques desferidos por políticas de austeridade e zelo neoliberal, mas a correlação automática entre posição de classe e estatuto de intelectual revolucionário que Gramsci defendia como sendo o do intelectual orgânico perdeu muito da sua racionalidade política, também porque a noção de operariado não corresponde já à da estratificação social do séc. 20.
Por outro lado, e esse é obviamente um dos legados do materialismo histórico, não se pode negar que os modos de produção material condicionam os processos sociais, políticos e intelectuais, e que por isso mesmo, a consciência e a experiência intelectual é condicionada pelas relações de produção. Mas neste ponto, a utopia marxista de que uma era de revolução social eclodirá das transformações na estrutura económica esbarra contra o muro da hegemonia do homem unidimensional (Herbert Marcuse). É que a realização de um aparelho hegemónico, na medida em que cria um novo campo ideológico (e.g., neoliberalismo), determina uma reforma das consciências e dos modos de conhecimento.
Esta condição é perfeitamente visível na Europa e nos EUA a partir da década de 1980, com a proclamação do famoso TINA (There is No Alternative) de Margaret Thatcher, e com a programação neurolinguistica do economês, nomeadamente através da colonização mental que intensificou o substracto religioso do capitalismo, ou seja, do pecado do homem endividado. É portanto com este enquadramento ideológico que o intelectuais pós-estruturalistas tiveram também de se confrontar.
Assim, não se compreende porque razão JPP postula que «por regra os intelectuais não gostam da democracia», porque a «democracia consolidada retira aos intelectuais o seu papel de oráculo»? Só se pode entender essa posição se tivermos do intelectual pós-moderno uma visão conservadora da missão emancipatória que a inteligência crítica deve sustentar.
O radicalismo democrático dos intelectuais deve por isso fundar-se numa aventura da igualdade das inteligências e, para emancipar um ignorante, como defende Ranciére, é necessário que se esteja já emancipado, porque depois o ignorante aprenderá sozinho o que o mestre ainda ignora (Jacques Ranciére, o Mestre Ignorante). É esta circularidade democrática da inteligência distribuída que a partilha do sensível favorece, e é isso que faz do cineasta Pedro Costa, por exemplo, um intelectual do cinema contemporâneo, na esteira de vultos consagrados como Daniéle Huillet e Jean-Marie Straub.
É verdade que a laicização da sociedade e a queda das grandes narrativas estruturais da política europeia acelerou o crepúsculo das vanguardas, e que tudo o que era sólido se dissolveu no ar como vaticinou o Manifesto Comunista. Mas também se sabe que foi exactamente a partir dessa profanação dos valores que Nietzsche e os filósofos da imanência prosseguiram a sua tarefa de desconstrução dos novos poderes destilados pelo capitalismo tardio, designadamente pelo capitalismo cultural e cognitivo.
Quando Deleuze e Guattari publicaram Anti-Édipo (1972), cartografaram o que já se vislumbrava como embate entre a máquina esquizofrénica e edipiana do capitalismo e a potência plástica do pensamento filosófico rizomático e nómada. Um dos aspectos fundamentais a ter em consideração desde então prende-se com o reconhecimento do poder da técnica e das tecnologias na relação com o desejo e o inconsciente, com maior acutilância quando se trata de equacionar a liberdade e a dominação nas sociedades de controlo.
É por isso que estamos já muitos distantes da época de Zola e do caso Dreyfus, a começar pela composição da esfera pública que se alterou radicalmente e pela proliferação (banalização?) de atitudes J'accuse! que fazem parte integrante do ecossistema dos media digitais, como atesta o Je suis Charlie do início de 2015, as inúmeras petições europeias e internacionais promovidas por académicos, o manifesto dos economistas aterrorizados, entre outros exemplos possíveis.
Em suma, diria que há duas dimensões essenciais que transformaram a paisagem iluminista dos intelectuais de JPP, a globalização capitalista e o pós-humanismo. No que respeita às capacidades intrínsecas do humano produzir pensamento crítico, a relação com as máquinas inteligentes, e com a inteligência artificial em si, tem de ser colocada no momento em que o cérebro humano funciona mais como membrana informacional do que como sede da inteligência universal, articulando fluxos de signos e imagens entre o inconsciente colectivo e o universo técnico do código binário. E neste aspecto, é necessário reconhecer que entre nós há intelectuais já nascidos ciborgues (nativos digitais), cujos berços foram e são uma extensão tecnológica do corpo recém-nascido, e para quem o mundo digital se mistura com a carne, sem que isso seja formulado como problema ontológico.
No fundo, o artigo, Volta Zola que fazes falta, de Pacheco Pereira parece consubstanciar-se na conjunção dialética aclarada por Umberto Eco, a de que os intelectuais apocalípticos e integrados são como duas faces complementares da existência da figura do intelectual no mundo contemporâneo. Enquanto que a predicação apocalíptica vê na cultura de massas uma monstruosidade anti-cultural (a cultura deveria ser aristocrática) e sinal de uma queda irrecuperável do homem culto; a segunda permite aos intelectuais integrar aqueles problemas teóricos no sistema mediático com o qual operam, produzem e emitem mensagens. É este intelecto geral (Marx) que hoje constitui a principal força produtiva do capitalismo pós-fordista, e simultaneamente é nele que reside a potência crítica e subversiva da multitude de operadores cognitivos, o cognitariado.