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Os centímetros de Cavaco

Numa campanha para as legislativas em que a direita baixa a votação para mínimos desconhecidos, em que o PS padece do vírus Centeno, em que a esquerda vê o apreço pala sua luta antitroika, designadamente o Bloco que comprova que a coerência é fértil, a chantagem do PR é um condicionamento inaceitável ao voto popular.

“A forma como irei decidir, embora já esteja na minha cabeça, eu não irei revelar nem um centímetro", Cavaco dixit acerca da nomeação do próximo governo pós-eleições de 4 de outubro próximo. Deixando, agora, de lado a utilização de uma unidade de comprimento para se referir à forma de uma decisão cerebral, convém recordar os poderes do Presidente da República neste campo.

Em primeiro lugar, como decorre do artigo 191º da Constituição, a responsabilidade política pelo governo a formar cabe ao parlamento. A responsabilidade do PR acerca do governo é meramente institucional desde a revisão constitucional de 1982.

É certo que a Constituição dá latitude ao PR para a indigitação da personalidade para primeiro ministro: fá-lo-á "tendo em conta os resultados eleitorais". Isso permite escolhas que não estejam rigidamente graduadas, como se tem falado, nos últimos dias, sobre número de mandatos versus número de votos, etc. Obviamente, a escolha do Presidente para ser eficaz e ter crédito político tem um limite: a presunção de que a Assembleia da República deixe passar o programa do governo e, nesse ato, sustente a responsabilidade política do primeiro-ministro. Para isso, a Constituição obriga o Presidente a ouvir previamente os partidos representados no parlamento (artigo 187º CRP).

O presidente pode até vir a testar soluções diferentes, uma a uma, o que não cabe ao presidente é tentar pilotar, a pretexto da formação de governo quaisquer acordos coligacionistas ou acordos parlamentares que cabem como é natural aos partidos e à sede legislativa.

Em segundo lugar, diz-se que Cavaco poderia "congelar" o governo de gestão em funções, ou nomear um governo de direita, e mantê-lo mesmo que rejeitado o seu programa pelo parlamento, até que haja um acordo maioritário ou até que termine o seu mandato em março próximo. Essa situação configuraria um abuso de poder, uma crise no regular funcionamento das instituições democráticas provocada pelo próprio PR, a quem compete zelar por esse funcionamento.

A subtração de poderes ao parlamento, com a agravante de ser em momento pré-eleitoral para a Presidência da República, cria um conflito de desfecho complexo quanto à idoneidade do titular de Belém. Não se alegue que não há prazos definidos, isso é a questão formal perante a questão material do PR capturar as competências do parlamento. Esta inverosímil manobra é tão grosseira que custa a crer que tenha passado pelos centímetros de Cavaco.

Numa campanha para as legislativas em que a direita baixa a votação para mínimos desconhecidos, em que o Partido Socialista padece do vírus Centeno, em que a esquerda vê o apreço pala sua luta antitroika, designadamente o Bloco que comprova que a coerência é fértil, a chantagem do PR é um condicionamento inaceitável ao voto popular.

Em terceiro lugar, essa é a advertência, o PR não pode vir a envolver, sob o pretexto da urgência europeia e do nervoso mercado da dívida, a preparação do Orçamento de Estado para 2016, numa espécie de linha paralela para um acordo quanto às linhas mestras da governação. A ideia de que o Presidente já tem tudo na cabeça mesmo antes do povo ir às urnas abona a sinceridade de Cavaco mas não abona a cabeça do dito. O centímetro do autoritarismo.

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, professor.
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