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Sem muros, o coração

O que pode um povo fazer quando assiste ao saque do seu país?

Falo, neste caso, da Grécia – mas poderia falar de outros países, também eles a saque, no passado mais próximo, ou no presente. Falo também do meu país, que, quarenta anos após o 25 de Abril, tem assistido à derrocada das conquistas democráticas, como as privatizações do que deveria ser do domínio público, onde a única riqueza que aumenta é a das grandes riquezas (e penso como é possível que, após o 25 de Abril, haja áreas de herdades privadas, como a da Comporta, que corresponde quase duas vezes à área de Lisboa, a nossa capital)? Falo, pois, também do meu país, onde, e isto é só mais um pequeníssimo exemplo, se revê uma lei como a da despenalização do aborto, e, nessa revisão, se torna a aviltar, a humilhar, as mulheres? Um país a saque também, o nosso. Falo da Grécia, de Portugal, da Europa. Ou alguma Europa.

Mas convidaram-me para falar em alternativas. E eu interrogo-me sobre que alternativas existem para a Europa. Que soluções políticas – quando vemos a esquerda dividida, a direita a ganhar terreno de uma forma alarmante, o desencanto + em pessoas antes politicamente motivadas, o índice assustador de abstenção nas eleições, que são a única arma de representatividade democrática que possuímos? Disse isto já uma vez, mas repito-o aqui: o meu grande medo é o de uma nova guerra, diferente desta que temos já, mas uma guerra dentro da Europa, com armas, mais violenta ainda e mais mortal. E não me parece que este medo seja infundado.

Porque que Europa é esta? De que Europa falamos, quando, como Boaventura de Sousa Santos alertava, já em 2013, num belíssimo ensaio chamado “O diktat alemão”, “um inquérito realizado aos alunos das escolas secundárias alemãs (entre 14 e 16 anos de idade) revelava que um terço não sabia quem fora Hitler e que 40% estavam convencidos de que os direitos humanos tinham sido sempre respeitados pelos Governos alemães desde 1933”? Que Europa é esta, em que se vendem pedaços de terra pertencentes a países, em que se oferecem, como prendas de casamento, ilhas pertencentes a estados soberanos? Onde está a união da chamada União Europeia?

As duas alternativas que me ocorrem são falhas em originalidade e muita gente falou já delas, bem melhor do que eu. A primeira alternativa é a absoluta necessidade de união da esquerda, desde o Bloco de Esquerda ao Partido Comunista, passando por alguma ala do Partido Socialista. Que se pense primeiro nos povos. A segunda alternativa será reflectirmos seriamente na revisão da união europeia e mesmo em continuarmos a adoptar uma moeda única.

Não estou certa quanto a esta alternativa, nem a defendo incondicionalmente, mas a pergunta assalta-me: de que Europa falamos e de que união falamos, quando a Europa tem pelo menos um sentido de trânsito duplo: para muitos de nós que aqui nascemos e vivemos, ela passou a significar um espaço ameaçado pela hegemonia das chamadas indústrias financeiras, conluiadas com a banca e governos corruptos. Mas, para tantos outros, a Europa continua a ser ainda sinónimo de salvação. Refiro-me aos emigrantes, esses e essas que, desde 2010, têm vindo a morrer aos milhares no estreito da Sicília, seres humanos que fogem da guerra civil da Síria, do corno de África, da crise iraquiana. Esses contra os quais alguns dos países da nossa Europa erigiram muros – ora de silêncio, ora burocráticos, ora reais, como os muros levantados pela Hungria. De que união europeia falamos, pois?

Quando preparava esta pequena intervenção, apercebi-me do que sabia já: que não tenho grandes respostas. Mas recordei-me que, na candidatura em 2013 do Bloco de Esquerda, se falava de felicidade, sublinhando-se que ela era entendida como a procura de um direito a que todos têm direito. E que da felicidade faz parte o espaço para a imaginação e para o deslumbramento. Por isso falarei daquilo que me é mais próximo, a palavra – e a poesia. Ao seu lado, ou dentro dela, porque parte do mundo, da violência e da “desonra” infligida sobre os povos. E da absoluta necessidade de resgatar palavras que se encontram alheadas do discurso político e que mereciam ser para ele trazidas novamente, na convicção mesma da etimologia da palavra “política”.

Só com esta arma, a palavra, também da poesia, consigo eu falar sobre a Europa. Com ela, e convicta de que, como escreveu Alberto Pimenta denunciando a invasão do Iraque no seu belíssimo e comovente livro Marthya de Abdel Hamid (que, sendo sobre o Iraque, podia ser sobre a Grécia, ou sobre o nosso país, ou sobre tantos países outros), “Querem contar eles / A história / Toda // Mas a história / Não é só sua / E da outra metade do bando”. Convicta ainda de que, como continua Alberto Pimenta, “O poema / não é escrito com armas / É escrito com o corpo. / Mas o corpo arde um pouco / De cada vez / Que escreve”.

Em 1934, dois anos antes de rebentar a Guerra Civil espanhola, e de a força aérea de Franco, juntamente com a nazi, destruírem Guernica, cinco anos antes de rebentar a Segunda Grande Guerra, que causaria dezenas de milhões de mortos, Fernando Pessoa publicava a sua Mensagem. Nela encontramos um poema chamado Europa, que começa com os versos “A Europa jaz posta nos cotovelos / De Oriente a Ocidente jaz, fitando”,” e que termina, afirmando: “o rosto com que fita é Portugal”.

Em 2013, publiquei um livro chamado Escuro, onde tenho dois poemas à Europa. Lerei esses dois poemas. Começo pelo segundo, que dialoga com o de Pessoa, sublinhando que a minha Europa não pode ser a Europa de Pessoa, essa Europa que, majestaticamente, fitava o mundo com o rosto de Portugal. A minha é a Europa espoliada e necessitada de se rever e à sua História. Vou ler esse poema:

Pouco fita a Europa, a não ser mortos
por múltiplos disfarces: química luz,
os lumes tão reais, os nomes amputados
pelos números, mesas de número fartas

Alguma vez fitou? De que roubos e fúrias
lhe foram as paisagens? E ao assomar
defronte à maior arte sua (sinfonias abertas
como nuvens, as cores mais deslumbrantes,

rochas pintadas em soberbas linhas,
os comoventes traços e palavras),
mesmo defronte a si, distante e bela,
que ventos lhe assomaram os cabelos?

Mesmo nesse arrepio novo de um século,
que prenúncios viu ela? Guerras a destruir-lhe
solo e gentes, o brilho azul da lua nas
trincheiras, a mais pura impiedade reluzindo

Não tem olhos agora de fitar, se alguma vez
os teve: perdeu-os noutras guerras.
Resta-lhe debater-se, como golfinho em dor
preso nas redes. Não tem olhos, nem mãos,

nem fita nada, a Europa. Nem cotovelos tem
que possam suportar justiças e bondade.
E mesmo aqui, se para aqui olhasse, nada veria,
a não ser outros gritos. Sem voz. Sem sul.

Sem esfinge que deslumbre.

Mas eu quero acreditar que podemos ainda ser deslumbrados, que a força da esfinge, real e metafórica, nos pode dar força. Acredito, portanto, que uma das alternativas continua a ser a palavra. A palavra gritada nas ruas, a palavra escrita, a palavra “dobrada em quatro num papel que leva dentro uma cruzinha laboriosa”, como escreveu uma vez Maria Velho da Costa, num texto belíssimo chamado “Revolução”. Essa é uma das armas. Recusar o silêncio, mesmo quando o medo se perfila. A solidariedade no deslumbramento que é passado pela palavra pode ser um dos antídotos para combater aquilo que é o vergonhoso privilégio de alguns e a feroz desprotecção de tantos. O segundo poema meu que aqui leio é um curto poema de amor pela Europa:

É o teu sono
ou o amor de ti
que assim me faz ficar:

ao teu alcance,
mas tu: impossível?

Que monstros te povoam
tão distante de mim?

Se os sonhos o quisessem,
ainda assim os medos
te guardavam

Descoberta,
sentei-me ao teu alcance,
à espera dos teus olhos –

Porque esta é também a minha Europa, aquela em que nasci e da qual não desisto. É por um outro olhar seu que continuo à espera. Cada vez mais exasperada, mas mantendo a resistência, acreditando que os monstros de que falo hão-de sucumbir. E que talvez tenha chegado o tempo de nos questionarmos sobre se nos podemos dar ao luxo de continuar a ser “aprazíveis” (e a expressão não é minha, mas de uma poeta norte-americana) e se não devemos seguir o que é dito numa das últimas cartas desse grande livro sobre direitos humanos e escrito durante o fascismo, que é Novas Cartas Portuguesas. Chegadas quase ao final, uma das três vozes do livro pede: “Diz uma só palavra alta e eu hei-de parir a alegria de um povo”.

“Sim”, querendo dizer “liberdade”, poderia ser essa palavra. “Não”, querendo dizer “recusamos”, poderia ser também essa palavra. Ou três palavras juntas: “Ainda aqui estamos”. Ou só duas: “Não desistimos”. Que elas possam passar de palavras altas à mais alta vontade do povo, e que esta seja respeitada pela vontade política. Que essas palavras possam passar a coisas sólidas, reais. Porque, apesar de tudo, e termino regressando a Alberto Pimenta: “Nunca a vida / Deixou de se reger / Pelo coração”. Acredito que o Bloco de Esquerda acredita fundamente nestas palavras.

De todas as alternativas, talvez seja esta a mais verdadeira.

Intervenção na sessão de encerramento do Fórum Socialismo 2015

Sobre o/a autor(a)

Poeta. Professora universitária na Faculdade de Letras do Porto
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