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Mário Dionísio (1916-1993): A heterodoxia de um revolucionário que não acreditava na posteridade

Dedicou a vida ao ensino, à escrita e à pintura. A intervenção política foi ditada por circunstâncias históricas. Primeiro para combater o fascismo e depois para lutar contra os desvios impostos pela “burocratização” da revolução do 25 de Abril. Recusou ser ministro por duas vezes. Era um artista, e na política quis apenas ser um “soldado”. Esteve sempre de costas voltadas para a glória, para as honrarias. Sentiu-se incomodado com as organizações que queriam pensar por “milhões de cérebros” e por isso rejeitou o papel do intelectual a quem era destinada a tarefa de “subir e descer escadas.” Fez amigos mas cortou ainda mais relações. Não foi um polemista mas não ignorou as provocações e por isso não usou o silêncio quando sentiu que era tempo de falar, de criticar, de clarificar.
Para Mário Dionísio, a cultura e a unidade eram alicerces fundamentais no processo de construção de uma sociedade democrática. E talvez por isso, tenha lutado contra moinhos, contra o vento.
Morreu como viveu: entre a paixão e a teimosia.
A Exposição Mário Dionísio- Vida e Obra está patente na Casa da Achada até ao próximo dia 28 de Setembro.
Horário: Segundas, quintas e sextas-feiras das 15 às 20 h; sábados e domingos das 11 às 18 h. Entrada livre
Casa da Achada- Centro Mário Dionísio
Rua da Achada nº 11, em Lisboa
Para Eduarda Dionísio, ex-Presidente da Direção da Casa da Achada, a exposição sobre a vida e a obra nasceu porque havia um espólio literário e artístico resultante de uma vida dedicada às artes. E era importante recolhê-la para ser trabalhada e posteriormente apresentada de forma itinerante em escolas, associações, bibliotecas municipais e outro tipo de organizações interessadas em dar a conhecer os vários percursos de uma vida intensa e empenhada como foi a de Mário Dionísio.
Foi assim possível reunir um conjunto de serigrafias, desenhos, autorretratos, pinturas a óleo e também livros, textos para catálogos de exposições, fotografias, recortes de jornais com entrevistas, artigos de opinião, além de outros documentos como, por exemplo, relatórios da Pide sobre a sua atividade. Tudo isto estava disperso e na posse da mulher (Maria Letícia) e de alguns amigos do escritor e pintor.
A filha de Mário Dionísio chama, no entanto, a atenção para o cuidado que houve em “ situar o homem no seu tempo” porque todos somos fruto de várias circunstâncias e o século XX foi fértil em acontecimentos a que ninguém ficou alheio: as duas guerras mundiais, a guerra civil de Espanha, o fascismo na Europa e o 25 de Abril. Tudo isto influenciou o escritor, a sua obra e suas opções de cariz estético e político.
Brincar com o fogo
Mário Dionísio foi um homem desassombrado que nunca aceitou a rigidez dogmática que pretendia impor uma atitude mais ou menos acéfala que se restringisse a pensar por? ou a rogo de?, como escreveu na sua autobiografia.
Nascido no seio uma família de lisboeta da pequena burguesia trepa-trepa ou trepa-que-não-trepa, afirmava que recebeu desta duas heranças: “de um lado o respeito pelo trabalho e pela palavra dada, o dizer as coisas cara a cara e uma costela (ainda) orgulhosamente popular; do outro lado, recebeu o amor da arte, a atração do invisível e um pendorzinho aristocratizante que há em todo o artista.”
Perdeu, no entanto, os pais muito cedo vendo-se precocemente envolvido na administração de um prédio degradado e penhorado que recebeu de herança. Aconselharam-lhe a venda. E assim, ainda adolescente, mergulha, embora por pouco tempo, no mundo dos negócios, cercado de lobos engravatados e usurários. Nasceu-lhe desta forma o horror ao mundo dos negócios, a consciência que a sociedade assentava num conceito onde havia o explorador e o explorado e a ânsia, embora quixotesca, de mudar o mundo. Muito antes de ler Marx ou sequer de saber quem era Lenine.
Liberto de alguns constrangimentos familiares típicos da época, o jovem Mário a quem a família tinha destinado o curso de Direito, opta por Letras. Já tinha o gosto e o hábito da leitura. E também um amor louco: escrever. E por ali, em Letras, pensava ele, tudo seria literatura, a morada da poesia. Mas enganou-se.
Sarcástico, por vezes corrosivo mas dotado de um notável sentido de humor - que irritava alguns, a maior parte pertencente à intelligentsia que circulava pelos cafés e salões a trocar salamaleques e máscaras de pretensa sabedoria, - gostava muito de brincar com o fogo. E fê-lo logo em 1938 quando apresenta a sua tese de dissertação de licenciatura intitulado Ode Maritima - Introdução à obra de Fernando Pessoa. E reprovou.
A este propósito escreveria mais tarde o seguinte: “dum desaire importante e bastante inesperado, ficou-me só a pobre consolação de ter sido o primeiro a pronunciar em sessão pública naquela velha Casa, o nome de Pessoa. Bem antes, pois, de nascer e de se espalhar por esse mundo fora o culto pessoano, a que nos sentimos hoje todos obrigados, no duplo sentido da palavra. Estava-se em 1938 e era um trabalho bem modesto, apressado e superficial (…) Coisas de que ainda coro.” Reparou a ousadia no ano seguinte com um dissertação sobre o escritor brasileiro Érico Veríssimo.

Painel da exposição Mário Dionísio- Vida e Obra – Foto de Casa da Achada - Centro Mário Dionísio
Para Eduarda Dionísio, o pai ensaiou mesmo uma provocação porque Pessoa tinha falecido havia três anos e estava ainda longe de ser visto com “ bons olhos” por muitos. Além disso, tinha sido um alcoólico o que para sociedade da época era gerador de muitos preconceitos.
Em 1952 volta a polemizar em torno de Pessoa. Escreve que o “puxão de orelhas” que Eduardo Lourenço lhe dá resulta de uma interpretação errada do que escreveu sobre o poeta porquanto fez questão de notar o seu interesse ab initio pela sua obra não o tendo nunca considerado “ expoente apenas dum período literário (…) secundíssimo.” O problema estava afinal na utilização da palavra “classe”, expressão a que Mário Dionísio recorreu frequentemente nas suas múltiplas reflexões sobre o neorrealismo e que acabavam sempre por levantar muita celeuma.
Apesar do estendal de miséria docente de Letras, foi ali que Mário se descobriu. Começou a escrever a sério tendo conhecido pessoas de nível excecional como Fernando Piteira Santos, Álvaro Salema ou Vitorino Magalhães Godinho, entre outros.
O intelectual ganhava fôlego e a sua atividade política robustez através de organizações como o Bloco Académico Antifascista, o Socorro Vermelho Internacional ou o jornal ilegal Barricada. Toma assim consciência que “ou se mudava o Homem, ou não se mudava nada.” Um pensamento que o acompanhou até ao final da vida.
A Pide começava a seguir-lhe os passos o que o levou a abandonar Lisboa por uns tempos e a refugiar-se no Alentejo.
Uma cultura indagadora
Em 1952, Mário Dionísio sai do PCP, onde desenvolveu um intenso trabalho, mas não abandona os seus ideais. Fiel ao marxismo, quer ser apenas “simpatizante” e não um “dissidente”, palavra que aliás ainda nem sequer tinha entrado no léxico político. Mas não esconde as críticas em relação à forma como este estava organizado. Os militantes estavam muito limitados na sua ação e de certa forma eram convidados a deixar levar-se pelo pensamento de quem comandava o partido. Poderá um partido revolucionário impelir os seus militantes a abster-se da crítica? Poderá uma organização marxista impedir a crítica de baixo para cima quando a inversa nunca está em causa?
“Que a repetição de palavras de ordem até ao atordoamento, mesmo no interior, substituísse uma cultura indagadora, que qualquer discordância de fundo obtivesse invariavelmente como resposta: terás razão, mas não é este o momento de. Quando a cultura nunca é para amanhã, é sempre para já”, escreveu
Mário Dionísio sabia que as interrogações que se colocava eram afinal obstáculos criados pelo partido que convivia mal com tudo aquilo que pudesse abrir brechas nos dogmas que impunham uma lógica de decisão vertical que não podia ser posta em causa.
Por isso, e ao contrário do que alguns disseram, a sua saída do PCP não se ficou a dever à rejeição do estalinismo- embora ele fosse anti-estalinista - até porque como também disse: “vinham longe o XX Congresso, as grandes revelações, as primeiras tentativas de degelo. Estávamos todos muito verdes, eu também”.
Equívocos à volta do neorrealismo
Tendo-se tornado um dos maiores expoentes do neorrealismo e um dos seus mais lúcidos teorizadores, Mário Dionísio agiu sempre no sector intelectual do partido. Talvez por isso não se coíba de sublinhar nas suas memórias a importância da sua contribuição para a formação e amadurecimento deste movimento. Em dezenas de artigos, crónicas e palestras.
E é assim que chegamos à sua obra de referência intitulada A Paleta e o Mundo que o autor considera “decisiva na chamada polémica do neorrealismo” e que recebeu em 1962 o Grande Prémio de Ensaio da Sociedade Portuguesa de Escritores.
Confessa que a ideia de escrever este livro - que tem quase mil páginas - resultou da “necessidade de afirmar publicamente a sua completa discordância de certas teses sobre criação estética, função social da arte, realismo que então se estavam a generalizar com um furor dogmático assaz deturpador de todo o pensamento crítico que aparentemente as inspirava”.
“O neorrealismo não era nem poderia ser uma outra maneira de, por razões de censura, dizer, 'realismo socialista'; o neorrealismo devia ser a expressão estética de uma visão marxista do mundo e, sendo esta tão complexa, aquele movimento, teria de se desdobrar em diversas maneiras, gostos, soluções imprevisíveis o que efetivamente aconteceu"
Mário Dionísio
Para o crítico de arte José-Augusto França a Paleta e o Mundo “é uma proposta de cultura nos domínios das artes picturais em que a crítica das obras os factos biográficos se encadeiam com abundantes referências e citações de crónica especializada, revelando vastíssima bagagem leitura”. 1
Para outros ainda era “a História de Arte em ebulição que estava em causa e que por isso não se limitou à pintura uma vez que não deixa de ser uma reflexão sobre a importância do Homem dentro dessa História.”2
Ainda neste campo e com a intenção de banir todos os equívocos surgidos em torno do movimento, Mário Dionísio, refere que nunca concordou com a designação de neorrealismo, que se deve a uma “infeliz expressão” do seu grande amigo Joaquim Namorado.
“O neorrealismo não era nem poderia ser uma outra maneira de, por razões de censura, dizer, 'realismo socialista'; o neorrealismo devia ser a expressão estética de uma visão marxista do mundo e, sendo esta tão complexa, aquele movimento, teria de se desdobrar em diversas maneiras, gostos, soluções imprevisíveis o que efetivamente aconteceu. Seria a voz duma classe em ascensão, de um mundo (um homem) necessariamente novo, que, como tal, teria de integrar toda a herança do passado, incluindo a da classe a que se opunha. Aí estava a utopia”, referiu
Um escritor que pinta ou um pintor que escreve?
Durante a doença pulmonar que o atirou para um sanatório durante 3 anos (1940/43) Mário Dionísio recebe regularmente a vista de três amigos com quem falava muito de arte, especialmente de pintura. “ Eu ouvia-os, feliz. Feliz via e revia os álbuns que me traziam para me ajudarem a dar menos pelo tempo. Foi de tal forma marcante esse tempo que um dia deixou escapar aquilo que já era mais do que um desejo: “Se eu pudesse pintar!”
Mas hesitou. Para contornar uma perturbação de quem nunca tinha pegado num pincel. Os amigos no entanto incentivaram-no . Eram eles Álvaro Cunhal, Huertas Lobo e o cabo-verdiano António Augusto de Oliveira. Entre telas e tintas um dia avançou. E não mais parou. Confessou a sua paixão até pelo “ cheiro das tintas”.
A sua referência maior no campo da pintura foi Vicent Van Gogh que conheceu através de uns cadernos publicados por Agostinho da Silva com o nome de Iniciação. O estranho pintor da orelha cortada foi, confessou, seu “ mestre” e assunto predileto durante anos.
Para Eduarda Dionísio, o pai foi pintor, escritor, professor e ativista político. Um homem fascinado pelas artes e empenhado na transformação social.
“Mas pode dizer-se que numa primeira fase era um escritor que pintava e mais tarde o pintor que deixou de escrever porque não suportou a capitulação das editoras perante os ditames do marketing. Na pintura estava mais defendido”, afirma.
A mercantilização da escrita e dos escritores foi fortemente criticada por Mário Dionísio.
A este propósito escreveu: “E a glória? Essa miragem que tira o sono a tanta gente. Publicidade. A explicação de (quase) tudo. Vender em vez de agradar, encontrar um mercado para isto, uma história que se venderá”.
O tempo começava a desgostá-lo. A direita tinha tomado conta da Revolução. E asfixiou-a. Porque ninguém reparou (ou não quis reparar) nos abutres que ficaram. Na sombra, é certo, mas à espera de ordens para avançar. Os jornais onde escreveu começaram a fechar.
No Autorretrato que publicou no Diário de Lisboa (em Fevereiro de 1990) deixou escrito: “ é um fulano digamos que intratável, não porque trate mal a gente, pelo contrário, mas por nos deixar sempre hesitantes sobre por onde lhe pegar. Tinetazinha incurável: um desejo de perfeccionismo quase incurável.
Escreveu sempre cada página dezenas de vezes, pintou e repintou cada uma das suas telas até à saturação. Além das que destruiu, uma montanha. É um chato em certas coisas: come sempre porque tem de ser e só bebe água, detesta demorar-se à mesa, gosta de conviver, lamenta-se que haja tão pouca gente com que (lhe) valha a pena fazê-lo”.
Publicou o seu último livro em 1988 com o título A morte é para os outros. E começou a dizer-se velho, sobrevivente.
Quando morreu, estava a pintar um quadro. Um acrílico sobre tela. Há partes que ficaram em branco mas as cores que estava a utilizar eram de uma suavidade tocante.
No dia a seguir à sua morte, o jornalista Mário Santos escreveu no jornal Público: “Como todos os neorrealistas, Mário Dionísio quis mudar o mundo mas não à custa da literatura, o que fez dele o único “ esteta” do neorrealismo português”.
Nota: Todas as referências que estão entre aspas foram retiradas de livros ou artigos publicados por Mário Dionísio ou outros e estão devidamente assinalados.
1 retirado do site da Casa da Achada.
2 excerto de uma entrevista conduzida por Eduarda Dionísio e Vítor Silva Tavares ao arquiteto Francisco Castro Rodrigues publicada no nº 2 da revista da Associação Abril em Maio (Abril de 2001).
Várias citações retiradas do livro Autobiografia, Edições O Jornal, 1987
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