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Um pequeno milagre social

Pierre Bourdieu, o famoso sociólogo francês, chamou-lhes um “milagre social”. Referia-se aos movimentos de desempregados. O comentário aplica-se a todas as tentativas de mobilização das pessoas mais pobres, particularmente das que se encontram fora dos coletivos de trabalho.

Na realidade, estas tentativas sempre se confrontaram com grandes dificuldades: a dispersão e atomização social e territorial das pessoas; a vivência da condição de desempregado ou de pobre como uma identidade negativa que se pretende passageira ou que é preciso esconder; os sentimentos de vergonha e culpabilidade; o isolamento e a desvinculação; as explicações fatalistas sobre o fenómeno; a ausência de um inimigo claro, sendo o Estado o interlocutor mais evidente, mas com o qual as relações são mais de “assistido” do que de antagonista.

Perante estes obstáculos, um movimento social de pobres ou de desempregados seria, por isso, um milagre improvável. E no entanto, os milagres acontecem.

No momento em que escrevo vou a caminho de Lisboa com sete pessoas que fundaram no Porto o movimento “Uma Vida Como Arte”. Trata-se de um coletivo de cidadãos sem-abrigo que se organizaram para denunciar o problema e fazer propostas. Só na cidade do Porto existem mais de 2 mil pessoas em situação de sem abrigo. Na rua, há cerca de 100 que estão sinalizadas pelas instituições. Outras 400 vivem em 238 casas abandonadas na cidade. As restantes, distribuem-se entre pensões pagas pela segurança social, instituições ou casas que os acolhem.

O movimento “Uma Vida Como Arte” começou por fazer um inquérito de rua junto de pessoas e instituições. Identificaram os problemas relacionados com o acesso à saúde, à habitação, ao emprego, mas também com as falhas das instituições. E denunciaram o modo como a assistência aos sem-abrigo se transformou num negócio. Um exemplo? Basta pensar nas cantinas sociais. Como alguns investigadores alertaram, o mesmo Governo que cortou os apoios sociais às pessoas mais pobres (no Porto, os beneficiários do Rendimento de Inserção eram mais de 100 mil em 2011 e são hoje cerca de metade) e que diminuiu os montantes que cada família recebe, transformou as cantinas num lucrativo negócio para algumas instituições.

Mas este está longe de ser o único problema. Uma das reivindicações do movimento é que se abra um inquérito à morte das pessoas sem-abrigo.

Neste ano que corre, morreram já 8 na cidade do Porto. Em 2013 tinham sido 27. Entre 2006 e 2012, foram 18 sem abrigo por ano.

Os números arrepiam. E correspondem apenas a pessoas que estavam a ser seguidas pelo NPISA (Núcleo de Planeamento e Intervenção junto das pessoas em situação de Sem Abrigo). Estas mortes acontecem no mais denso silêncio e sem identificar onde é que podia ter sido feito mais (pelo Estado, pelos técnicos, pelas instituições, pelos serviços de saúde) para evitá-las.

Hoje, estas pessoas tomam a palavra no Parlamento. Entre outras coisas, para explicar por que razão decidiram processar o Estado por violação dos Direitos Humanos. Em si mesmo, que ocupem o Senado da Assembleia da República, instituição que lhes pertence, e que ali digam da sua realidade e de sua justiça é já transformador. Mas não chega. É preciso que sejam ouvidas.

Artigo publicado em expresso.sapo.pt a17 de julho de 2015

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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