Aborto e misoginia: pagar a culpa

porJoão Manuel de Oliveira

16 de July 2015 - 14:14
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A legislação sobre a interrupção voluntária da gravidez continua a ser motivo para grupos conservadores procederem à sua carta de exigências, que consiste em arrestar os direitos das mulheres.

A legislação sobre a interrupção voluntária da gravidez que, em Portugal, foi debatida desde os primórdios da democracia, continua a ser motivo para grupos conservadores procederem à sua carta de exigências, como a que foi discutida na Assembleia da República, no dia 4 de julho, que consiste em arrestar os direitos das mulheres, pôr em risco a sua saúde, menorizá-las em prol da sua única e exclusiva preocupação: a manutenção da opressão sobre as mulheres mantidas debaixo da pata de determinados grupos marcados por ideologias conservadoras, que impõem a sua moral a tudo e a todas. Sob o manto diáfano da ideia de vida, pensaram assim que as mulheres tinham que obedecer a esta moral que se disfarça de ética, porque assenta na imposição de uma determinada ideologia sobre toda uma sociedade. Maternidade como obrigação funcional, decorrente do feminino, maternidade forçada, porque estes senhores e senhoras e suas instituições é que sabem o que é melhor para as mulheres.

Aproveitaram-se da crise para impor a ideia de que ninguém tem que pagar os abortos das outras. Esta reivindicação não é nova, foi usada no referendo de 2007 quando o desespero de perder os fez apelarem ao neoliberalismo escroque para assim derramarem sobre estas mulheres a culpa, que na racionalidade neoliberal, tem que ser paga, sujeita à multa. Ora, repare-se também noutra dimensão: a marca de classe. O desconforto com as mulheres pobres, por certo pouco educadas, preparadas para abortar por ‘dá cá aquela palha’, como gente moralista de classe média acredita, umas ‘doidas’ que usam o aborto como contracetivo. Este grupo põe o volume mediático no máximo, quando se trata de falar de aborto reincidente, o pecado capital cometido tantas e tantas vezes.

O recente estudo da Direção Geral de Saúde é contundente para qualquer grupo ou organização que apresente argumentos baseados na evidência, o que claramente não é o caso desta gente. O aborto é seguro e raro, por ser legal. Atirando as esperanças dos grupos anti-mulheres para o espaço, o aborto diminuiu em Portugal, é repetido poucas vezes e é abaixo da média europeia. As mulheres que mais abortaram estão desempregadas e em muitos casos, igualmente o companheiro. São estas que devem pagar? Mas o SNS isenta-as de pagamentos de taxas moderadoras. Uns meios de comunicação social mostraram isto, outros não, alinhados que estão e em sintonia com o sexismo e a misoginia do grupelho anti-mulheres. Claro que, para eles, esta não é a questão. As mulheres em Portugal terem direitos sexuais e reprodutivos, garantidos pela lei da interrupção voluntária da gravidez é o grande problema destes grupos. Uma lei boa, que só peca por ter prazos excessivamente curtos para a escolha das mulheres, mas que mostra o respeito das políticas públicas portuguesas pela auto-determinação e pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, por mais que visões marcadas pelo conservadorismo ultra-montano sonhem e tenham anseios de regressão aos tempos do obscurantismo, das prisões por aborto (lembremo-nos do julgamento da Maia), dos abortos de vão de escada e das mulheres a morrerem no processo. Repare-se nos debates onde estes grupos intervêm e suas posições: contra o casamento de pessoas do mesmo sexo, contra o reconhecimento da identidade de género, contra a educação sexual na escola. O projeto deles é muito claro: fazer de Portugal um inferno para as mulheres e para a sua saúde. Fazer regressar a auto-determinação aos tempos do Estado Novo e à necessidade de pedir licença ao marido, ao Estado e à Igreja.

Portugal é hoje um país melhor, mais igual, mais respeitador dos direitos das pessoas, garantindo às mulheres gravidezes desejadas, queridas, projetos de vida, protegendo a sua saúde e não a imposição arbitrária de normas de grupos sociais conservadores. Vamos ver o que a coligação faz disto. Esperemos que cumpra a Constituição na sua proteção das desigualdades em função do género, apesar da esperança ser mesmo muito pouca, tendo em conta tudo o resto que já fizeram. No sistema nacional de saúde, as grávidas não pagam. E as mulheres que vão abortar estão em que estado? Quanto à obrigatoriedade de assinar ecografias, profissionais de psicologia clínica e psiquiatria devem ter mais a dizer que eu. Legislar a partir desta ideia trata-se de um ato eticamente inqualificável, crueldade da mais básica. Mas já sabemos, o quanto estes grupos odeiam mulheres. Chama-se misoginia.

João Manuel de Oliveira
Sobre o/a autor(a)

João Manuel de Oliveira

Investigador auxiliar do ISCTE. Coordenador da linha temática Género, Sexualidade e Interseccionalidade do Centro de Investigação e de Intervenção Social-IUL
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