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Diz-me uma palavra alta, por Ana Luísa Amaral

Numa Europa suspensa das decisões da banca e das indústrias financeiras assistimos à vitória da enunciação de uma palavra que a maior parte de nós não conhecia. Essa palavra é “oxi”: NÃO.
Assistimos à vitória da enunciação de uma palavra que a maior parte de nós não conhecia. Essa palavra é “oxi”: NÃO.

“Diz-me uma palavra alta, e eu hei-de parir a alegria de um povo”. Esta frase é de Novas Cartas Portuguesas, esse livro extraordinário escrito em 1972, por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, ainda durante a ditadura portuguesa.

Não há palavras altas, no sentido estrito do termo. O que há é palavras intensas, palavras que comovem, palavras que devolvem amor-próprio, palavras que despertam o orgulho bom, a esperança. Essas palavras expandem as emoções, tão arredadas do discurso político, como arredado desse discurso tem vindo a estar o sofrimento humano.

No Portugal de 1972, uma palavra alta poderia ser “liberdade”. Ou “paz”, sua equivalente, se pensarmos em como a guerra estava inextricavelmente ligada ao regime de Salazar e Caetano. Às autoras do livro e ao povo português só seria possível ouvir gritar essa palavra alta passados dois anos, no 25 de Abril. E assistir então à alegria de um povo.

Mas isso aconteceu em 1972. Mais de quarenta anos depois, numa Europa suspensa das decisões da banca e das indústrias financeiras e das intimações omnipresentes de governantes como Angela Merkel, no dia 5 de Julho do ano de 2015, assistimos à concretização na Grécia do desejo expresso nessa belíssima frase de Novas Cartas: a vitória da enunciação de uma palavra que a maior parte de nós não conhecia, mas que entrou já pelas nossas casas dentro, felizmente com um sentido diferente de outras que nos invadiram também os ouvidos, como troika, ou rating. Essa palavra é “oxi”: NÃO.

Escrevi há pouco tempo, neste mesmo jornal, um pequeno artigo intitulado “E dizer não, não, não!”. Nesse artigo, em que citava Emily Dickinson e a sua frase “’Não’ é a palavra mais selvagem que se pode confiar à língua”, dizia que sendo essa palavra, no dizer poético e em metáfora, a mais selvagem, pode também ser, na vida, a única suficientemente poderosa para combater a selvajaria. Isto fizeram-nos os gregos, por maioria, em referendo popular. Disseram “não”, recusando ceder às intimidações e às ameaças que tal gesto poderia acarretar. Sentindo medo, decerto, porque lhes é tão incerto o futuro. Sabendo também, certamente, da sua solidão de povo espalhado por pequenas ilhas, no mar tempestuoso e cínico de governos e instituições que lhes são adversos e hostis.

O apoio que têm recebido vem de gentes e de vozes que, como eles, dizem também não. Ou que ainda o não fizeram, mas desejariam ter uma coragem semelhante. Mas há palavras que são rastilhos e dão à luz acontecimentos. Precipitam coisas. E, pelas reacções institucionais desaustinadas a que temos vindo a assistir, bastará que esse desejo tenha sido aceso nas vozes que os gregos despertaram com a sua palavra alta e que, a partir da praça Syntagma, se espalhou pelo mundo. Parindo a alegria de um povo.

Muitos dizem que os gregos pagarão caro por esta palavra. É possível. Sabemos que, infelizmente, é muito provável. Mas, independentemente do que se poderá vir a passar, foi uma lição esta que a Europa recebeu, a da escolha de uma simples palavra com três letras, que ao mesmo tempo exprime candura, esperança e resistência.

Ontem, uma amiga enviou-me um email que dizia: “Nunca fui tão grega!”. Eu também NÃO –

Sobre o/a autor(a)

Poeta. Professora universitária na Faculdade de Letras do Porto
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