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Parlamento brasileiro aprova redução da maioridade penal, 24h depois de a ter rejeitado

Eduardo Cunha, presidente da Câmara e ferrenho defensor da redução da maioridade penal recolocou em votação matéria já votada 24h antes e conseguiu reverter o resultado. Comemoram os conservadores e o mercado de segurança privada. Por Najla Passos
Eduardo Cunha, presidente da Câmara e ferrenho defensor da redução da maioridade penal recolocou em votação matéria já votada 24h antes e conseguiu reverter o resultado

Sob o comando do presidente Eduardo Cunha (PMDB-RJ), a Câmara recolocou em votação matéria já votada, voltou atrás na decisão tomada 24 horas antes e aprovou a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos para os crimes graves. A polémica decisão que, na sessão anterior, não conquistou os 308 votos necessários para alterar a Constituição brasileira, foi chancelada na madrugada desta quinta (2) por 323 deputados. Os votos contrários foram 155 e as abstenções, duas.

Na madrugada anterior, foram 303 votos favoráveis, 184 contrários e três abstenções. Difícil acreditar que a justificação para as mudanças de votos esteja contida no texto apresentado de afogadilho pelos deputados Rogério Rosso (PSD-DF) e André Moura (PSC-SE). De concreto, a única alteração que foi apresentada em relação ao substitutivo rejeitado antes é não incluir o tráfico de drogas entre os crimes que deixariam os jovens de 16 e 17 anos sujeitos à maioridade penal prematura.

A emenda aprovada mantém a regra de cumprimento da pena em estabelecimento separado dos destinados aos maiores de 18 anos e dos menores inimputáveis, dispositivo que, a primeira vista, parece dialogar com a defesa dos direitos humanos, mas interessa e muito à segurança privada. Como o ministro da Justiça, Eduardo Cardozo, já admitiu, a redução irá levar o já falido sistema carcerário do país ao caos, e o setor espera expandir os seus lucros com a privatização das prisões.

A matéria não prevê o destino de recursos para a efetivação de programas socioeducativos e de ressocialização dos adolescentes em conflito com a lei. Como se trata de alteração à constituição, a matéria terá que ser votada em 2ª volta na Câmara antes de seguir para o Senado.

Democracia sob ataque

A manobra arquitetada pelo presidente para recolocar uma matéria vencida em votação foi duramente criticada pelos progressistas, que a classificaram como mais um golpe antidemocrático do presidente da Câmara. “Nós não podemos participar de um jogo que, quando um time marca um golo, ele é anulado. E que, quando um time tá ganhando, um tempo se prorroga até que o outro time vire o jogo. Isso não é democrático”, desabafou o deputado Alessandro Molon (PT-RJ).

Em uma crítica contundente ao estilo autoritário do presidente, Molon desvelou o método de trabalho que caracteriza a gestão. “Qualquer um que vença vossa excelência, vence no máximo por apenas uma noite, porque quando Vossa Excelência perde, encerra os trabalhos e, na madrugada, começa a articular a derrota da posição vencedora”, apontou.

O deputado também tentou alertar os colegas de outros partidos que todos, mais cedo ou mais tarde, serão vítimas do mesmo golpe. “Qualquer posição deste plenário que prevaleça contra Vossa Excelência será fatalmente derrubada no dia seguinte. Às vezes, com ajuda de alguns. Outras vezes, com ajuda de outros. Todos serão vítimas desse procedimento. O Democratas, o PSDB e outros partidos da oposição e alguns partidos da base que acham que beneficiam com essa manobra de Vossa Excelência, amanhã serão vítimas. E amanhã não poderão reclamar neste plenário”, defendeu.

A configuração do golpe

A confusão começou, de facto, quando Cunha anunciou que, mesmo derrotado o substitutivo à Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171/93 na sessão anterior, apresentaria uma nova emenda aglutinativa sobre o mesmo tema para ser apreciada naquela sessão. A manobra já havia sido articulada na reunião de líderes e, embora tenha sido rechaçada por PT, PCdoB, PDT, PSB, PPS, PV, PROS e PSOL, caiu na graça da maioria dos partidos com representação na casa, incluindo o maior deles, o PMDB de Cunha, além do PSDB e do DEM.

A bancada do PSOL denunciou o golpe explicando que, derrotado o substitutivo, caberia ao presidente da casa colocar em votação, no máximo, a PEC original. Entretanto, como a PEC original era ainda mais rígida que o substitutivo (reduzia a maioridade penal em todo e qualquer caso) e, por isso, corria o risco de ser derrotada, Cunha manobrou para colocar em pauta uma nova emenda aglutinativa, o que é inconstitucional e fere o regimento da casa.

O deputado Glauber Braga (PSB-RJ) acusou o presidente de desrespeitar o voto dos parlamentares ao tentar reverter o resultado obtido na sessão anterior, em que a redução fora barrada. Cunha conquistou 303 votos a favor do projeto que defendia, enquanto o mínimo necessário para mudar a Constituição seriam 308. “Temos uma decisão proferida pela Casa que, se não agrada, vossa excelência coloca em votação até a vontade de vossa excelência prevalecer”, denunciou.

Cunha, bem ao seu estilo, rebateu com ironia. “A presidência não admite a falta de respeito que está sendo dirigida à mesa. O deputado tem todo o direito de questionar, se contrapor às decisões da Presidência, recorrer e até ir ao STF [Supremo Tribunal Federal], como alguns de vocês têm ido sem êxito. Agora, não se dá o direito de desrespeitar a presidência”, disse.

Foi a vez da deputada Érika Kokay (PT-DF) entrar no debate. “Vossa Excelência exige respeito. Nós também exigimos respeito, a democracia exige respeito e a constituição exige respeito. Por isso, nós não vamos permitir que eternamente a vontade do presidente, como se Luiz XIV fosse, se imponha sobre o conjunto da vontade dos parlamentares, ferindo a pluralidade precípua do poder legislativo. Por isso, senhor presidente, nos não podemos admitir que golpes após golpes sejam impetrados nesta casa para fazer a vontade daquele que acha que a cadeira lhe dá o direito de rasgar a constituição e de rasgar o regimento”, argumentou.

Cunha reagiu às novas críticas com mais ironia. "Eu acho muita graça que os deputados, alguns do PT, quando eu dei interpretações em matérias do governo, como o projeto da desoneração, as medidas provisórias do ajuste fiscal, ninguém reclamava que a interpretação poderia ser duvidosa. Agora, quando é matéria do interesse deles, de natureza ideológica, eles contestam. Eles têm dois pesos e duas medidas", debochou.

O PSDB saiu em defesa dos métodos do presidente. “Não houve nenhuma novidade. Todos sabiam que, se o substitutivo da comissão especial não fosse aprovado, as demais emendas seriam. O processo legislativo continua”, disse o deputado Domingos Sávio (PSDB-MG), insensível ao desrespeito à atividade parlamentar contido na manobra. Os líderes do DEM e do PMDB também saudaram a “ousadia” de Cunha.

Golpe como prática

Não foi a primeira vez que Cunha recolocou em votação matéria já vencida, mas que o resultado não lhe agradava. O mesmo ocorreu durante a apreciação da reforma política, quando o plenário da casa derrotou o financiamento privado das campanhas eleitorais e, quando ainda comemorava o resultado, foi surpreendido por uma nova votação da mesma matéria que alcançou resultado diferente, constitucionalizando a prática que, na visão dos progressistas, está na base da corrupção que assola a política brasileira.

Artigo de Najla Passos, publicado em Carta Maior

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