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Se Portugal fosse o Líbano

O Líbano tem 10 mil km2 de superfície e 4 milhões de habitantes. Neste momento, tem cerca de 1,3 milhões de refugiados sírios registados. O mundo não pode ser um somatório de tragédias. E nós não podemos ser só gente que lamenta muito tudo isto.

O Líbano tem 10 mil km2 de superfície e 4 milhões de habitantes. Neste momento, tem cerca de 1,3 milhões de refugiados sírios registados, estima-se que o total seja de cerca de 1,5 milhões. Tem mais de 450 mil refugiados palestinianos. Com as guerras no Iraque e na Síria, alguns dos novos refugiados palestinianos são duplamente refugiados, já estavam em campos na Síria quando tiveram de fugir para o Líbano, ou triplamente refugiados, estavam no Iraque, tiveram de fugir para a Síria e depois para o Líbano. 192 mil crianças vieram já aqui nascer após a fuga das mães. Em cada 6 crianças, apenas 1 vai à escola. Feitas as contas é simples: há 200 refugiados por km2, o que faz do Líbano o país com maior número de refugiados per capita no mundo inteiro, e metade da população atual veio fugida da guerra e da fome. O que se vive no Líbano é uma crise sem precedentes. Estas pessoas e famílias foram na esmagadora maioria acolhidas por famílias libanesas. A crise afeta os refugiados e afeta as famílias de acolhimento. Não há trabalho, não há comida que chegue, os problemas de água e de acumulação de resíduos sólidos não param de aumentar. O país, rodeado pelo Mediterrâneo a oeste, pela ocupação israelita a sul e pela Síria a norte e a leste, acaba por ser o primeiro lugar que todos os que fogem procuram.

Há três anos estive aqui a presidir a uma delegação do Parlamento. Na altura o número de refugiados sírios era de 300 mil, já muito acima da capacidade limite do país, mas a guerra não pára e as pessoas a fuga à morte certa também não. O problema agora assume proporções impossíveis de gerir para qualquer país. Não é uma ficção, é mesmo gente de carne e osso, gente como nós, gente que perdeu casa, família, país. Há dois anos achei que estava a receber no Líbano a maior lição de solidariedade da vida, com estas famílias de acolhimento que fizeram das outras suas e que não têm nenhum apoio por isso. Agora que voltei a presidir à delegação do Parlamento Europeu percebi que os limites humanos estão muito para além do que julgamos possível, até na generosidade. O que se passa aqui não é uma questão síria ou libanesa, diz-nos respeito a todos/as. Ou, pelo menos, devia dizer. O que se passa aqui é uma bomba relógio prestes a rebentar. O que se passa aqui tem tanto de força como de extrema fragilidade. Estes milhões de vidas contam pouco para as contas dos negócios desta vida. É frustrante, no mínimo é frustrante. Mas é também, paradoxalmente, uma porta de esperança que está escancarada à frente dos nossos olhos.

Eu sei que parece tudo muito longe, mas podemos fazer um jogo de comparação. Se não fosse o Líbano, mas Portugal. Se fosse Portugal, para ter o território ocupado com a densidade que está neste, teríamos a viver connosco 20 milhões de refugiados, é uma conta simples, a nossa área territorial é 10 vezes superior. Mas tentemos não tornar tão dramática a visão e usemos a população. Se fosse para termos a mesma proporção, não teríamos a viver connosco 20 mas antes 5 milhões de refugiados, a metade equivalente. Um exercício de comparação não é mais do que isso, mas ajuda-nos a perceber do que por aqui se passa. O mundo não pode ser um somatório de tragédias. E nós não podemos ser só gente que lamenta muito tudo isto. Independentemente de como pensamos, não nos comovemos ao menos? E essa comoção não nos faz exigir que quem manda pare de fazer a guerra de uma vez por todas, ou de financiar direta ou indiretamente, ou de comprar petróleo nos territórios ocupados por grupos terroristas, ou de não insultar ou envergonhar quando um país com muito mais recursos aceita 20 ou 30 refugiados, ou gritar bem alto que não é de deixar morrer as pessoas lá na terra delas?

Amanhã de manhã parto para o vale de Beka, onde há a maior concentração de refugiados sírios.

Não, não é deles que estou a falar, é mesmo de nós.

Escrito no Líbano e publicado na página de Marisa Matias no facebook

Sobre o/a autor(a)

Eurodeputada, dirigente do Bloco de Esquerda, socióloga.
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