Para alguns, defender o comunismo hoje é um anacronismo.
Alinhar-se a Karl Marx mesmo na civilizada França do século XXI pode ser arriscado. O filósofo Alain Badiou foi alvo de críticas que o viam como um "perigoso revolucionário" e até mesmo "defensor do regime de Terror", aquele que tomou conta da Revolução francesa e do comunismo estalinista. Os seus detratores eram alguns dos chamados "novos filósofos", surgidos na década de 70, que com o passar do tempo se tornaram anticomunistas intransigentes.
"O capitalismo global humanizado não pode ser o horizonte final da esquerda”, se insurge o filósofo e psicanalista Slavoj Zizek, para quem é preciso reabilitar a “ideia comunista”, não como algo que já fracassou mas como um universalismo a ser construído.
"Estou convencido que numerosos problemas como os ecológicos, biogenéticos e novas formas de apartheid não podem ser resolvidos pelo capitalismo global", esclarece Zizek, que organizou com Alain Badiou em 2009, em Londres, um colóquio chamado On the idea of communism, que se repetiu em Berlim, em 2010.
O comunismo, o futuro do Homem
Para defender Alain Badiou dos ataques dos "novos filósofos" Zizek e Fabien Barby escreveram, em março de 2010, um manifesto ao qual se juntaram centenas de filósofos e intelectuais do mundo inteiro. O texto do manifesto dizia claramente: "nós não renunciaremos jamais à ideia do comunismo".
E continuava: "Por mais problemática que seja essa ideia, por mais nova que pareça a sua forma de se tornar realidade, por mais críticos que sejamos sobre a história do comunismo no século passado, por mais diferentes que sejam as nossas propostas, uma coisa é certa : um comunismo a ser reinventado, de um novo género ainda indefinido, é o único futuro do Homem. Porque esta é a eterna e única verdade política. A única justiça que a razão humana pode conceber de forma sadia".
O manifesto concluía: "O tempo não é mais, queiram ou não, dos fracos, pretensiosos e arrivistas ’novos filósofos’ mas dos filósofos da renovação".
Filósofos contemporâneos como Etienne Balibar, a exemplo de Badiou e Zizek, acham que Marx deve ser o contraponto do capitalismo atual. A mesma coisa pensava o filósofo Daniel Bensaïd, falecido em 2010, em Paris.
O que os une é uma certeza: Karl Marx continua a ser um filósofo fundamental. Eles debruçaram-se sobre os escritos de Marx e defenderam em livros e conferências a pertinência de seu pensamento e da ideia do comunismo, que Badiou chama de "hipótese comunista".
Provocativo e dotado de um sentido de humor inabalável, Zizek declarou a um jornal francês: "Continuo comunista porque todo mundo pode ser socialista, até mesmo Bill Gates".
Badiou e Zizek são os dois filósofos europeus mais conhecidos, traduzidos e comentados no mundo. Para Badiou, como para Zizek, "o desatre obscuro" do estalinismo (como o denomina Alain Badiou) e o fracasso do “socialismo real” não invalidam o horizonte de emancipação radical que é a “ideia comunista”, que eles reatualizam em novas formas de ação. Ambos afirmam um universalismo concreto, um universalismo de combate.
Alain Badiou apresentou o seu amigo Zizek em 2008 e novamente este ano no seu seminário como alguém que vem de um horizonte filosófico diferente. "O pensamento de Zizek é fruto da tensão entre o idealismo alemão (Kant, Schelling, Hegel) e Lacan. A sua dialética é mais a da negação, numa elaboração que se faz do lado de Hegel e do real, num conceito que ele encontra em Lacan".
Quanto a seu próprio horizonte filosófico, Badiou diz que ele se constituiu na tensão dialética entre a ideia e a liberdade, entre Platão e Sartre tentando uma resposta à pergunta, "como a soberania da ideia, da verdade, pode ser compatível com a liberdade?"
Renovar a vocação igualitária do comunismo
Citado por Etienne Balibar, o filósofo Louis Althusser, seu mestre, dizia que o comunismo estava presente no meio de nós, impercetível, invisível, nos interstícios da sociedade capitalista, em lugares onde os homens se associam em atividades sem fins lucrativos.
De passagem por Paris este mês de junho, Zizek foi convidado a falar no seminário que Alain Badiou dá na École Normale Supérieure de Paris, que frequento há alguns anos. Ele estava na capital francesa para o lançamento de seu livro Menos que nada - Hegel e a sombra do materialismo dialético, prefaciado por Badiou, que o considera "um dos mais importantes livros de filosofia lançado nos últimos anos".
Em um livro anterior, Primeiro como tragédia, depois como farsa, Zizek voltava a Hegel, que considerava que a história se repete necessariamente. Karl Marx observou: "uma vez como tragédia e na vez seguinte como farsa". Ao que Herbert Marcuse acrescentou: "a farsa pode ser mais terrível que a tragédia que ela repete". Considerado por muitos como o "filósofo mais perigoso do Ocidente", o agitado Zizek tem como ambição defender a “ideia comunista”, recomeçar do início, "o que significa não reproduzir o que foi um fracasso mas diante dele renovar a vocação igualitária original do comunismo".
Dito isto, é evidente que ele não vê solução no mercado.
“Se há uma lição a tirar do fracasso da União Soviética é que o dirigismo da economia nacionalista só funciona numa certa etapa de desenvolvimento industrial tradicional. Não tenho uma fórmula clara. Mas a solução que entrevejo é a de um Estado sustentado por um movimento popular, por uma mobilização extraparlamentar”, declarou ele em 2010, em conferência parisiense. Ele citava como digna de grande interesse a experiência de Evo Morales na Bolívia. Para Zizek, Morales conseguiu uma poderosa mobilização da maioria silenciosa indígena. Assim, ele é sustentado por uma mobilização permanente da maioria.
Ainda não havia o Podemos, na Espanha, nem o Syriza, na Grécia, que empolgam o filósofo hoje.
Segundo Zizek, o estalinismo foi algo muito mais enigmático que o nazismo. Por isso ele concorda com Badiou que chamou o período estalinista de "desastre obscuro". Para Zizek, os dois totalitarismos não podem ser comparados por múltiplas razões que explica.
Na conferência que faria no mês em que morreu, em Paris, em janeiro de 2010, Daniel Bensaïd, filósofo e militante trotskista escreveu um longo texto no qual reafirmava sua convicção que o comunismo é único horizonte contra "a predação e a privatização do mundo".
Escreveu: "De todas as formas de nomear 'o outro', o que está em face do obsceno capitalismo, a palavra comunismo é aquela que conserva maior sentido histórico. É ela que melhor evoca o comum que se dá na partilha e na igualdade, a partilha do poder, a solidariedade que se opõe ao cálculo egoísta e à concorrência generalizada, a defesa dos bens comuns da humanidade, naturais e culturais, a extensão de um campo de gratuidade dos serviços e bens de primeira necessidade, contra a predação generalizada e a privatização do mundo".
Leneide Duarte-Plon é jornalista, em Paris. Artigo publicado em Carta Maior.