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As lições de Espanha: O 24-M e a necessidade de construir a unidade popular

O 24 de maio foi, sem dúvida, o início de uma primavera anunciada. Daqui em diante, cabe à esquerda partidária e aos movimentos populares construir uma alternativa capaz de vencer as legislativas de novembro. A única saída é a Unidade Popular. Por Rafael Boulair.

Há poucas semanas realizou-se um interessante debate na sede do Bloco de Esquerda-Gondomar intitulado “As lutas de Maio”. Maio é, de facto, o mês de todas as lutas. Em Espanha, tem sido momento das grandes vitórias, do 15 de Maio de 2011 ao 24 de Maio de 2015. Já toda a esquerda reconhece o Movimento dos Indignados que tomou de assalto a Plaza del Sol no centro de Madrid como o momento chave que acordou as massas que se haviam diluído com o passar dos anos, afogadas pela propaganda e pela dureza do longo inverno neoliberal que representa, grosso modo, o regime de 78 e cuja política claramente antipopular se acentuou a partir da crise mundial de 2008.

Com uma crise imobiliária comparável à americana, embora em menor escala, os espanhóis foram vítimas, como os outros povos do sul da Europa, da terapia de choque económica imposta por Bruxelas e Berlim. O governo do social liberal Zapatero capitulou à primeira perante as exigências austeritárias dos ordoliberais. Contudo, no meio da recessão e do marasmo, nasceu uma nova esperança, alicerçada na força espontânea dos movimentos sociais. O 15-M provocou transformações culturais e transformou as mentalidades, trazendo o povo espanhol para a rua. Durante os três anos que se seguiram de governo do PP, as ruas das grandes cidades encheram-se de gente que não estava nostálgica pelos direitos sociais perdidos. Tinha, pelo contrário, recuperado a sua confiança e exprimia, mais do que nunca, a sua determinação inabalável em vencer as forças responsáveis pelo austericídio, semente da miséria em crescimento e de um desemprego assustadoramente elevado. Reiteradas vezes se cercou o Parlamento; nasceu a PAH, a Plataforma de los Afectados por la Hipoteca e, mais tarde, as mareas, verdadeiras marés de gente que se encarregaram de defender a escola publica, a saúde, que estavam sob um ataque ferocíssimo.

Finalmente, em janeiro de 2014, chegou a altura de converter a cólera social em alternativa política. O instrumento para essa mudança foi o Podemos. O seu objetivo era a chegada rápida ao governo do pais. Nas europeias de 25 de maio, o primeiro sucesso eleitoral da alternativa em marcha deixou as elites castelhanas arrepiadas e deu o alento suficiente à população para não recuar nas suas lutas.

Da batalha das europeias à queda do regime

Ao resultado satisfatório do Podemos nas urnas, o sistema respondeu com uma estratégia altamente defensiva: o aumento do medo. A doutrina do choque e pavor, retirada dos manuais da CIA dos anos 90, visa atemorizar os votantes, agitando fantasmas como o da bancarrota como consequência de uma putativa vitoria da esquerda. Na noite das eleições gregas, o moribundo Rajoy fez um discurso anti Podemos, no qual se podiam encontrar uma série de anáforas, de frases que começavam por No podemos e se referiam ao perigo do populismo. Na pratica, tivemos direito à exibição da ideologia e do método neoconservador em todo o seu esplendor: vender resignação, asseverando que qualquer mudança de política seria desastrosa. Tal retórica só nos pode fazer lembrar um certo There Is No Alternative de uma certa reacionária inglesa que passou à Historia. Paralelamente, a esquerda trouxe aos espanhóis o discurso da esperança. Um dos seus slogans era “Hace cuanto tiempo no has votado con ilusion?”, pergunta que revela a especial importância e peculiaridade dos desafios políticos que se enfrentam por estes dias no nosso pais vizinho.

Um ano depois de ouvirmos falar da entrada na cena política de um partido desconhecido, voltamos a receber boas notícias de Espanha: a unidade popular foi bem sucedida, e as listas promovidas e apoiadas pelo Podemos tiveram um triunfo extraordinário. Pablo Iglesias afirmou que as grandes cidades eram o motor da mudança. Estava a referir-se a Madrid, a Barcelona, a Valência e a Saragoça, onde as candidaturas cidadãs levaram a melhor. Manuela Carmena ganhou Madrid e Ada Colau tomou Barcelona. Foi o povo que tomou as rédeas do poder nestas duas capitais europeias, que Colau vê como um futuro eixo da Revolução Democrática no sul europeu. Podemos dizer que o Podemos conseguiu reinventar a dialética de classes, com uma nova linguagem, ao chamar la gente ao povo e casta à burguesia. Em vez de negar e diluir as contradições de classe, apontou o dedo ao inimigo previamente definido, o regime neoliberal que se caracterizou pela alternância de PP e PSOE no poder, levando a cabo políticas similares. Através de uma receita que conjuga esperança e uma agenda progressista, desde a proposta das 35 horas à recuperação dos direitos sociais, articulou-se a vontade de mudança da juventude urbana e a revolta crescente da classe média sob fogo. O Podemos conseguiu, ainda, um precioso triunfo: quebrou o individualismo, a última proteção do regime contra as pessoas. O slogan da campanha à de Barcelona-“nos querian en solitud, nos tendran en comun- mostra a força que o povo tem quando se organiza. Foi também o equilíbrio entre a organização e a espontaneidade que permitiu juntar forças e dar asas aos movimentos sociais que já existiam até conseguirem ganhar o controlo das maiores cidades. O 24 de maio foi, sem dúvida, o início de uma primavera anunciada.

Daqui em diante, cabe à esquerda partidária e aos movimentos populares construir uma alternativa capaz de vencer as legislativas de novembro. A única saída é a Unidade Popular. Num país como Espanha, em que as feridas das divisões da esquerda custaram a sarar, e, sobretudo, custaram caro ao contribuírem à sua derrota durante a Guerra Civil, há que encarar com a devida precaução o processo que agora se inicia. A Izquierda Unida, o Equo, o Compromis e os seus respetivos protagonistas, desde o Beiras ao Alberto Garzon e passando pela Monica Oltra, já se chegaram à frente. Uma ampla aliança popular começa a desenhar-se e é extremamente promissora. O segundo desafio do Podemos é captar o eleitorado do PSOE. Na prática, tem de continuar esse processo, que já iniciou nas municipais do mês passado. Foi assim que Iglesias declarou que “los socialistas de corazon han votado morado”. Conseguir apresentar-se como alternativa ao governo de direita implica relegar o partido de Pedro Sanchez para uma posição periférica na política espanhola que pode acabar com a sua pasokisação. Esvaziar o centro é a única forma de superar a direita.

Quase três décadas depois da queda da URSS e da capitulação da social-democracia, a esquerda tem uma oportunidade única de regressar, ou melhor, de tomar pela primeira vez desde a Frente Popular de 1936, o poder numa das maiores economias europeias. A vitoria de Espanha, pelo seu peso político e estratégico, pode muito bem obrigar as elites europeias a abandonarem a política de austeridade sob pena de perderem governos pelo continente fora. A dívida será reestruturada e a Grécia terá o futuro salvaguardado. A importância do que está em jogo vai levar a combates violentos que culminarão no choque das urnas. Pablo Iglesias disse que “a história tem um coração antigo”. E no coração da Europa sopram novamente os ventos do fascismo. Para o travar e fazer avançar a mudança no Velho Continente, precisamos, mais do que nunca, de vislumbrar a realidade recorrendo ao instrumento que nos trouxe até aqui: o materialismo histórico. A primavera da mudança levar-nos-á muito depressa a novembro e às eleições derradeiras. A vitória esta ao nosso alcance: cabe à esquerda bater-se pois dela dependera o futuro de todo o continente.

# Rafael Boulair, estudante do secundário e dirigente concelhio do Bloco no Porto.

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