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A pós-Grã-Bretanha: que importa?

Cameron está sob grande pressão para sair da União Europeia, o chamado Brexit (ou British exit).

No meio do século XVII, as Províncias Unidas (mais ou menos a Holanda de hoje) eram a potência hegemónica do sistema-mundo capitalista, que tinha então uma dimensão geográfica menor. Era o país mais rico do sistema-mundo, com as mais eficientes empresas industriais. Dominava o comércio e as finanças deste sistema-mundo. Tinha as mais poderosas forças militares.

Começou então o seu declínio enquanto potência hegemónica. E, uma a uma, perdeu cada uma destas posições de superioridade. Para salvar o máximo que pudesse, tornou-se um parceiro júnior da Grã-Bretanha, uma aspirante à hegemonia. A superioridade que gozou durante mais tempo foi o seu domínio financeiro, que manteve até os anos 1780. Nessa altura, alguém poderia ter escrito um comentário intitulado “Pós-Holanda: que importa?”

Para a Holanda, na época, tal como é hoje para a Grã-Bretanha, a verdadeira questão é a quem importa. Se estudarmos a Holanda desde os anos 1780, verificaremos que se manteve um dos países mais ricos do mundo. A vida lá é mais confortável materialmente do que na maioria dos países do mundo. Mas, de todas as outras formas, a Holanda tornou-se irrelevante. Não esteve na primeira linha da nova tecnologia. Sim, permaneceu um importante centro do comércio mundial, mas de forma alguma um centro indispensável. Não pode impor as suas preferências geopolíticas a outros países. Na verdade, muito poucas pessoas sequer discutem o papel da Holanda como ator geopolítico. De facto, esbateu-se no pano de fundo, acompanhando, como beneficiário menor, as decisões das sucessivas potências económicas – primeiro a Grã-Bretanha, depois os Estados Unidos. A Grã-Bretanha chegou agora ao estágio em que a Holanda se encontrava nos anos 1780, o estágio de permanente riqueza relativa e irrelevância geopolítica definitiva. Quem mais se preocupa com isso são as instituições financeiras britânicas, que até recentemente ainda eram estruturas muito poderosas no sistema-mundo.

O Financial Times, que funciona mais ou menos como o porta-voz das elites financeiras britânicas, publicou um editorial em 5 de maio de 2015 cujo título era: “Depois de uma famosa vitória, a hipótese de restaurar o Reino Unido”. A “famosa vitória” é, evidentemente, a inesperada maioria, pequena mas decisiva, conquistada pelo Partido Conservador nas recentes eleições britânicas. O subtítulo do editorial era: “A tarefa de Cameron é salvar a União e manter-se na Europa”.

A incerteza é se Cameron pode cumprir essa tarefa. Se puder, vai estender o poder das instituições financeiras britânicas por mais uma década, pelo menos. Mas muitos, na Grã-Bretanha e fora, têm outras prioridades. Salvar a união significa de alguma forma impedir que o Partido Nacional Escocês (SNP) obtenha o seu anunciado objetivo de conquistar a plena soberania para a Escócia. O SNP foi bem, muito bem, nestas eleições. Conquistou 56 dos 59 lugares da Escócia no Parlamento britânico. É difícil pensar num mais ressonante apoio da opinião pública, especialmente quando recordamos que o SNP tinha ganho apenas seis lugares nas eleições anteriores.

Contudo, isto não significa necessariamente que o SNP venceria um referendo de independência. Mas dá ao SNP muito poder de negociação com Cameron, e tenciona usá-lo. O SNP tem, de facto, um programa de três passos: (a) obter imediatamente uma devolução significativamente aumentada de poderes no seio da Grã-Bretanha; (b) promover um referendo sobre a independência, de preferência autorizado, formulado de forma a maximizar uma votação positiva; (c) tornar-se um estado soberano mas continuar na União Europeia (UE) e, é claro, nas Nações Unidas. Cameron, e ainda mais a sua delegação parlamentar, querem minimizar o passo (a), resistir firmemente à ideia do passo (b), e nunca chegar ao passo (c).

Se este fosse o seu único problema político, Cameron poderia facilmente ganhar a luta com o SNP e “salvar a União”, mas não é. Ao mesmo tempo, Cameron está sob grande pressão para sair da União Europeia, o chamado Brexit (ou British exit). Diz-se que há 60-100 deputados conservadores que simplesmente querem sair. Além disso, o partido dedicado à saída da Grã-Bretanha da UE, o United Kingdom Independence Party (UKIP), obteve 12,6% dos votos, e tornou-se o terceiro partido em percentagem de voto.

Assim, Cameron tem também um programa de três passos implícito, tal como o SNP. O passo (a) é pressionar a UE para “desfederalizar” mais, permitindo à Grã-Bretanha eximir-se ainda mais das obrigações de estado-membro. O passo (b) é convocar o referendo que prometeu ao Partido Conservador para 2017, mas o mais tarde possível. O passo (c) é derrotar o referendo e assim permanecer na UE.

O passo (a) do SNP, de imediata devolução significativa de poderes, é improvável, e o passo (b) de um referendo, qualquer tipo de referendo, ainda mais improvável e, assim, o passo (c) de uma completa soberania pacificamente negociada é quase uma miragem. O passo (a) de Cameron de eximir-se de mais obrigações da UE é improvável devido à forte resistência dos outros membros da UE, e principalmente da Alemanha. Assim, o passo (b) de derrotar o referendo torna-se ainda mais improvável. E, em consequência, o passo (c) de um Brexit aparece como altamente provável.

Se estas apreciações fazem sentido, então o objetivo da elite financeira britânica – salvar a União e permanecer na UE – seriam vencer o primeiro e perder o segundo. Que aconteceria então? Continuaria o SNP o seu percurso de negociações pacíficas, ou a opinião pública consideraria a possibilidade de forçar mais os movimentos?

Para ver as consequências de um Brexit, temos de deixar de ver apenas a Grã-Bretanha e, em vez disso, olhar para o resto do mundo. A UE já está em dificuldades. A sua eurozona enfrenta um possível Grexit (a saída da Grécia) que, se ocorrer, poderia bem levar a um desmoronamento da roda a eurozona. Além disso, em mais países para além da Grã-Bretanha, a opinião pública tornou-se menos e menos entusiástica em relação à UE e os partidos que favorecem uma saída estão a ganhar força. E a UE está dividida em relação à resposta a dar à reafirmação da Rússia do seu papel político na Europa, especialmente no que se refere à Ucrânia. Acrescentar o Brexit a este cocktail de dificuldades poderia ser demais para a UE. A UE e a Eurozona são um castelo de cartas, que pode simplesmente entrar em colapso.

Contudo, um esfacelamento da UE, a fortiori a sua dissolução, teria consequências em todo o mundo. Os Estados Unidos, que já não são uma potência hegemónica inquestionável, deixaram de poder contar com o apoio militar da Grã-Bretanha, o que é muito inoportuno para Washington. Esta situação empurra os Estados Unidos, ou pelo menos o presidente Obama, a procurar obter ainda mais urgentemente um acordo com o Irão. Esta prioridade de Obama, por sua vez, empurra a Arábia Saudita a desligar-se ainda mais dos Estados Unidos e a procurar formar uma aliança anti-Irão de facto com tudo e todos, como deixou bem claro o rei Salman. Em consequência, reforça-se a reafirmação geopolítica da Rússia, com a China talvez a decidir tornar-se uma potência geopolítica mediadora na Ásia ocidental.

E não nos esqueçamos do mau estado da economia-mundo, apesar da insistência de todos os lados de que as dificuldades estão a ser ultrapassadas. Este otimismo público é outra miragem que pode não durar muito mais. Para voltar ao início desta análise, Cameron deveria saborear a sua inesperada vitória nas eleições britânicas porque ele (e as elites financeiras da Grã-Bretanha) podem vir a lamentá-la – e muito cedo.

Immanuel Wallerstein

Comentário nº 401, 15 de maio de 2015

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo e professor universitário norte-americano.
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