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A morte presumida de um pescador

A actual legislação mostra-se absolutamente desadequada em relação à situação dos pescadores que perdem a vida nos naufrágios das suas embarcações.

O actual Código Civil, no art.º 114, define que a morte presumida de uma pessoa seja decretada decorridos dez anos sobre a data das últimas notícias, ou passados cinco anos, se entretanto o ausente houver completado oitenta anos de idade. Esta legislação mostra-se absolutamente desadequada em relação à situação dos pescadores que perdem a vida nos naufrágios das suas embarcações.

Por vezes, estes corajosos homens do mar, no seu trabalho para nos trazerem o bom peixe à calmaria da nossa mesa e das nossas famílias, acabam por perder a vida na faina, sem que o seu corpo apareça ou possa ser cabalmente identificado quando trazido à tona. Tal tem acontecido variadíssimas vezes nos últimos anos com a comunidade piscatória de Vila do Conde, Póvoa de Varzim e Figueira da Foz, só para referir alguns exemplos.

Enquanto o corpo não aparecer das profundezas marítimas, para que se possa oficialmente declarar o óbito do pescador, as viúvas e família dos desaparecidos não têm descanso, nem espiritual nem material. Além da perda de alguém que amavam, não poderão receber as indemnizações dos seguros a que têm direito, e vivem imensos problemas burocráticos devido à indefinição da situação do desaparecido. Têm dificuldades, por exemplo, na movimentação de contas bancárias conjuntas, dificuldades ao nível fiscal, das Finanças, dificuldades na declaração formal da constituição do agregado familiar, na gestão de bens, no acesso a eventuais heranças, etc. Além da falta do seu marido, pai ou filho, estas famílias vivem diariamente com dificuldades que só quem as conhece entende o calvário que tal situação representa.

A mudança na lei é absolutamente urgente. Apesar dos esforços que têm sido feitos pelas associações de pescadores e por alguns grupos parlamentares, nada mudou em relação ao enquadramento legal destas situações, e quem sofre com esta demora continuam a ser as famílias que já de si não têm uma vida fácil.

O Bloco de Esquerda apresentou no dia 13 de Fevereiro um Projecto de Lei que, de acordo com o bom senso e justificações das associações representativas, facilita a declaração de morte presumida em caso de naufrágio ou desaparecimento de embarcação, encurtando o prazo de 10 anos para 3 meses para a declaração do óbito. Esta é uma boa proposta e deveria ser acompanhada pelas demais forças políticas. Porém, não tem havido entendimento entre as forças parlamentares, principalmente as da maioria, para que se proceda rapidamente à alteração da lei. Com isto continuam a sofrer as famílias dos pescadores desaparecidos, por exemplo, dos cinco tripulantes do “Santa Maria dos Anjos” desaparecidos há quatro meses ao largo de Sintra, ou do “Mar Nosso”, com dois corpos por recuperar no mar das Astúrias há mais de um ano atrás.

Num país com tradições tão estreitas com a actividade piscatória, e onde os seus governantes, incluindo o Presidente da República, continuamente enchem os seus discursos com a importância do mar, é estranho que em situações tão concretas quanto esta não pareçam ter pressa em proteger quem efectivamente do mar depende. Por favor, mudem a lei. O país e os pescadores, agradecem.

Sobre o/a autor(a)

Linguista. Dirigente distrital do Porto do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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