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Somos nós, querida Europa
Luisa Passerini é uma historiadora italiana que tem escrito bastante sobre identidade e Europa. Num texto recente, insta-nos a pensar “o que não deve ser feito” quando procuramos pensar a memória europeia. Para Passerini, há um gesto que decididamente devemos evitar: o de postular essa memória em termos de continuidade, imaginando uma espécie de linha mais ou menos permanente que carregaria consigo uma herança cultural com dois mil anos, feita de luzes e progresso. Na sua opinião, deveríamos pelo contrário valorizar a multiplicidade, a diversidade e as tensões que esse espaço albergou. Por outras palavras: a memória da Europa, se não quiser ser um mero exercício ideológico de legitimação do existente, não pode omitir o colonialismo, a perseguição das minorias, a subalternização das mulheres ou as guerras e os genocídios encetados neste continente que, sobranceiro, se gosta de imaginar mais “velho” do que os outros.
É um desafio intelectual e político. Só pensando dessa forma – diz-nos a historiadora – estaremos em condições de “romper com o eurocentrismo e com as hierarquias entre regiões e países europeus e acelerar o abandono de hierarquias internas e externas, como as distinções de longa data entre centro e periferia, entre oeste e leste, entre o Mediterrâneo e o norte”1. É assim mesmo. A Europa será um espaço de respeito pela autodeterminação, pelos direitos humanos e pelo que se considera estar “à margem”, ou será outra coisa qualquer. E essa outra coisa qualquer – que é na verdade a “Europa real” que hoje nos governa - é uma herança que não iremos querer prolongar e reinventar.
Olhemos para as notícias. De um lado temos a pressão imposta à Grécia e a intransigência de quem pretende vergar o oponente à força do poder: “apresentamos argumentos e respondem-nos com regras”, explicava há uns dias o novo coordenador da equipa grega de negociadores, Euclides Tsakalotos. Não é um discurso entre iguais nem uma tentativa de harmonizar posicionamentos. É um jogo de força para mostrar quem pode e quem manda. Hoje em dia, a Europa dos Tratados Orçamentais como regra, da austeridade como receita, da dívida e do euro como garrote é uma Europa contra os povos. Contra o povo grego, desde logo, mas contra todos os outros povos que se venham a levantar em nome da dignidade e da justiça.
Do outro lado temos a tragédia que ocorre no Mediterrâneo, com milhares de homens, mulheres e crianças a tentarem a travessia para o “lado de cá”. Fugidos à guerra e à instabilidade, tantas vezes criadas ou acicatada por potências europeias, eles e elas são o testemunho dessa combinação perturbante entre coragem e desespero. A isso tem a Europa respondido com um discurso securitário, centrado no aumento da vigilância e na punição aos traficantes, transformados no eixo central do problema, ao mesmo tempo que se enreda num jogo sobre números reduzidos de refugiados a serem acolhidos por cada país. A extrema-direita não precisa de vencer nas urnas para que o seu discurso vá tendo eco nas instituições.
A cada dia que passa, a cada história que conta, a Europa teima em mostrar o seu lado cinzento. Não será assim que construiremos a memória dos nossos futuros.
1 Luisa Passerini (2015), “A ética da memória europeia: o que deve ser feito”, in Manuel Loff, Filipe Piedade e Luciana Castro Soutelo, Ditaduras e Revolução. Democracia e Políticas da Memória. Coimbra: Almedina, p. 454.
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A UE só será viável se
A UE só será viável se instaurar um poder forte, rompendo com os entraves que representam as liberdades e as conquistas sociais herdadas de outros tempos.
Essa ruptura, aliás, está já em marcha com as leis antilaborais, o desmantelamento dos serviços públicos, as privatizações, o reforço das polícias. A AUSTERIDADE PERMANENTE É SÓ MAIS UM INSTRUMENTO (sublinhados meus).
Mas ainda agora a procissão vai no adro. Isto é só o começo. Para chegar ao nível dos EUA falta muito mais, como eles não se cansam de dizer. Vai ser preciso ter a ousadia de dar o passo para um regime abertamente antipopular.
Há quem pense que tal não será possível devido aos “valores há muito enraizados na vida política europeia”. E há mesmo quem queira descobrir na UE um exaltante “património genético – liberdade, igualdade, tolerância, democracia, Estado de Direito, direitos humanos, respeito pelas minorias”.
Isto não passa de balelas. Por duas razões.
Primeiro, o regime de democracia burguesa que conhecemos na Europa não foi fruto de nenhum “espírito do progresso”, mas da Revolução Francesa e das grandes revoluções populares que, nos séculos XVIII-XIX, arrancaram ao Antigo Regime e à burguesia o reconhecimento das liberdades fundamentais.
E as posteriores “conquistas sociais” europeias também só surgiram graças ao impulso da Revolução Russa junto das massas e à derrota do nazi-fascismo. Em cada Estado, a burguesia foi forçada, devido a revoluções e guerras, a fazer concessões às massas – é esta, muito prosaicamente, a origem do “modelo social europeu”.
Ora, o “património genético” da União Europeia é justamente o contrário disto. A União Europeia é uma construção de um tipo nunca visto, um superaparelho estatal criado por cima, pela negociação entre Estados, sob a batuta de três ou quatro potências – tudo nas costas e perante a apatia das massas. Construção de cúpula animada pelos mais poderosos grupos capitalistas da Europa e por eles imposta às burguesias menores e aos povos no seu conjunto – a natureza intrínseca da UE está no pólo oposto da democracia e do progresso social.
Como facilmente se entende: à medida que este novo projecto capitalista de grandes proporções tenta levar por diante as suas aspirações económicas, políticas e militares, mais insuportáveis se lhe tornam as resistências localistas das burguesias menores e sobretudo a recusa do proletariado e das massas de cada país europeu a perder aquilo que ainda conservam do passado.
Para a UE avançar, precisa de derrotar essas resistências. Um superestado poderoso tem que ter o maior dinamismo económico, a maior rentabilidade do capital e o maior poderio militar. Para alcançar o alvo da Agenda de Lisboa – fazer da UE “a região mais competitiva e mais próspera do mundo”, isto é, sem meias palavras, destronar os EUA como superpotência – há que “actualizar” o regime político.
A fascização europeia que hoje se projecta às claras só parece impossível e absurda aos que a imaginam pelo velho modelo das arengas de um fuhrer tresloucado e das marchas em passo de ganso. Eminentemente moderna, ela não terá nada que ver com essas formas arcaicas; nem mesmo com os neofascismos das últimas décadas, mais ou menos folclóricos porque marginais. O seu poder tremendo vem-lhe do facto de ela corresponder exactamente às necessidades dos grandes conglomerados financeiros e industriais, que são a alma da União. Ela brota diariamente, naturalmente, da dinâmica dos capitais em luta pela rentabilização máxima, pela conquista de mercados e territórios, pela vitória sobre os rivais.
E pode tirar partido das novas tecnologias da comunicação e da informação, dos novos armamentos, das novas técnicas de vigilância, de repressão e de condicionamento das massas.
Hoje já não é preciso suprimir por decreto a liberdade de informação, a liberdade partidária e sindical, as eleições, porque os recursos modernos permitem tornar esses talismãs da democracia simplesmente inoperantes, esvaziá-los, pervertê-los. Hoje, graças ao monopólio dos meios de comunicação, a burguesia pode justificar todas as medidas antiproletárias, antipopulares, repressivas, xenófobas, de pilhagem do Estado pelas multinacionais, invocando sempre solenemente o “Estado de direito democrático” e a “sociedade livre e pluralista”. Como faz, em forma mais avançada, a sua irmã-rival dos EUA.
É com os olhos nesse exemplo, aliás, que as burguesias europeias se vêm aplicando desde há décadas, agora mais estimuladas ainda pelo argumento da “guerra ao terrorismo”.
Para já, uma coisa parece evidente: o que a esquerda tem feito até agora para combater o projecto fascista-imperialista da UE são cócegas. Na sua esmagadora maioria, os partidos que falam em nome dos interesses populares, e que na realidade exprimem a tacanhez e o desnorteamento das classes médias, decidiram jogar na carta das instituições. Acham que opor-se a um projecto tão poderoso não tem futuro e que o melhor é entrar no barco, para “corrigir o rumo”. Encantados por terem assento no “Parlamento Europeu”, dedicam-se a reclamar uma “Europa social”, pedem moralização, discutem frivolidades, embolsam subsídios.
Só não falam do essencial – do gigantesco desafio que representa derrubar pelo levantamento das massas esta etapa suprema e mortífera da concentração capitalista. Será preciso que o ponto de vista comunista cristalize finalmente em partidos capazes de se lançar a essa tarefa.
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