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Fotografias de um presente originário

Pode a arte despertar um desejo de (auto)preservação? Pode a experiência da emoção estética iniciar uma consciência ambiental?

Pode uma fotografia de um lugar gelado e longínquo na Antártida imprimir em nós um sentimento de familiaridade? Pode uma fotografia do povo Himba na Namíbia, ou de uma população indígena do norte da Sibéria, fazer surgir em nós uma ideia de comum? Pode a arte despertar um desejo de (auto)preservação? Pode a experiência da emoção estética iniciar uma consciência ambiental? A beleza salvará o mundo?1

Até 2 de Agosto, a Cordoaria Nacional será a casa de uma exposição singular e inesquecível: Génesis. Julgo que é impossível ver, e olhar demoradamente, as fotografias de Sebastião Salgado e sair em indiferença, sem marcas na memória, no imaginário, no sentir ou no pensar. Dedicada aos últimos redutos naturais e humanos de um planeta ameaçado, esta exposição é composta por mais de duas centenas de fotografias, resultantes das viagens realizadas pelo reputado fotógrafo brasileiro, entre 2004 a 2012, por 32 regiões remotas e, por vezes, inóspitas.

Em grande formato e no registo preto&branco, o impacto estético destas fotografias é ampliado de um modo apenas superado pela poderosa sugestão de sentido fornecida por cada objeto fotografado. Sebastião Salgado permite-nos visitar territórios inusitado nos círculos polares e em florestas tropicais, em extensas savanas e nos tórridos desertos, em montanhas geladas e ilhas desertas. Se há lugares onde apenas as mais resistentes formas de vida encontram um habitat, outros recantos tornaram-se o lar de animais ou de povos ancestrais cuja sobrevivência depende fundamentalmente do isolamento em que se mantêm. Como refere a curadora da exposição, Lélia Wanick Salgado, Génesis é “uma jornada em busca do planeta como ele existiu, desde a sua formação e na sua evolução, antes que a vida moderna se acelerasse e nos afastasse do núcleo essencial”. Aquelas fotografias comprovam então que “o nosso planeta ainda abriga vastas e remotas regiões onde a natureza reina em imaculada e silenciosa majestade”.

Embora cada fotografia se constitua como meio e fim coincidente na sua materialidade estética, o propósito da exposição é explicitamente político e claramente anunciado como “uma convocatória para a batalha”. Sebastião Salgado partilha connosco uma beleza oculta, defendida e protegida, como um privilégio generosamente concedido, mas fá-lo “em tributo” a um planeta frágil “que temos de proteger”. E é isso que nos quer dizer: esse espantoso mundo, que nos inclui como humanos, está em perigo. E é preciso assumir responsabilidades.

Porém, as fotografias que compõem a exposição formam um conjunto que sugerem uma ideia de génesis intricada numa experiência de um tempo trocado, isto é, de um presente antigo e paradoxalmente originário. O que podemos conhecer e contemplar são imagens de um planeta mais próximo das origens e, por isso, aparentemente mais distante no tempo e no espaço que reconhecemos como casa-mundo. Mas aquelas paisagens e povos foram no passado como hoje ainda são. Para o reconhecimento de um mundo e humanidade comuns, condição necessária para uma consequente consciência de (auto) preservação, é preciso lembrar que aquelas fotografias nos mostram lugares, animais e pessoas de um hoje que também é o nosso – as fotografias mais antigas foram tiradas em 2004.

Além disso, aquilo que nos é mostrado/desocultado pelas fotografias de Sebastião Salgado pertence a uma ordem de um mundo que nos inclui. É preciso não cair no fascínio do exotismo que facilmente desenha fronteiras entre um nós e esse outro que tanto é uma paisagem inóspita como um povo culturalmente diferente. Afinal, as grandes metrópoles também são paisagem deste mundo e foram construídas por seres que partilham a mesma humanidade dos povos fotografados. No distanciamento, esconde-se uma aproximação. Tudo faz parte da história do mundo: os arranha-céus e as montanhas bicudas, as tribos isoladas e as que não vivem sem internet, o que é conhecido e o desconhecido, a máquina fotográfica e a natureza intocada captada pela objetiva.

Assim, Génesis permite-nos também a experiência de uma certa ambiguidade material e temporal que pode constituir-se como um ainda – um sinal de esperança para nós e para o planeta. A ação humana comporta em si a marca da sua irreversibilidade, mas também da sua imprevisibilidade, diz-nos Hannah Arendt. São características trágicas que significam, no entanto, uma possibilidade sempre renovada de começar (algo) de novo e de promessa, isto é, poder e responsabilidade.

Um pulsar ético e ecológico individual é preciso despertar em cada um de nós, sim. Porém, o belo convoca-nos na sua universalidade, desperta um sentido comum, permite-nos conjugarmo-nos como um coletivo. Nesse sentido, o belo gesto, como o que podemos apreciar naquelas fotografias, é também político e, neste caso, deve levar-nos, como comunidade do mundo, à construção de uma alternativa radical para mudar o paradigma económico, ambiental, social e cultural. Isso ou a barbárie.


1 Fiódor Dostoiévski, em O Idiota (1869).

Sobre o/a autor(a)

Investigadora e doutoranda em Filosofia Política (CFUL), ativista, feminista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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