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Não-lugares

A revolução fez-se nas ruas e é nelas que tenho de vivê-la até ao fim. A liberdade não se cumpriu para todos.

Encosto-me para trás, nesta almofada de retalhos de cores sumidas pelo tempo, que outrora terá ajudado a decorar alguma sala elegante e agora se afigura como o mais fiel dos aconchegos. Abro um dos jornais perdidos por aqui enquanto o sol ainda espreita. Previsões meteorológicas para dias que já passaram, anúncios de carros e corpos que talvez já não existam e publicidade a sonhos e felicidades.

Escolho outro, ou o que resta dele, e deparo-me com uma paisagem familiar. Começo a ler a história de Fernando, nome fictício. Tinha 17 anos quando, por curiosidade, fumou heroína pela primeira vez. Experimentou e gostou tanto que rapidamente se viu em outros campos de batalha. “O que se seguiu já não é novidade para ninguém”, contou ele à jornalista, ao país e agora também a mim. Na verdade não vislumbrou outra solução senão abrigar-se nas estrelas.

Fecho o jornal e reparo que Fernando está aqui ao lado. Não sei se é o da história que acabei de ler e também não sei se tem nome oculto ou simplesmente o esqueceu. Somos muitos e muitas como ele, que vamos tentando obliterar o que fomos e até o que somos. Motivos diferentes levaram-nos a morar debaixo deste teto imenso, que ora queima, ora regela.

Não me vitimizo. Há quem o faça por cá, mas eu não. Foi uma escolha, o que raramente conseguem compreender. Em tantos anos só conheci uma pessoa como eu, que tinha optado por morar aqui. Aqui e ali, porque na verdade nem estamos sempre no mesmo local. Não existe propriamente uma morada fixa. Alugam-se espaços temporários, uns mais cómodos que outros. No verão, por exemplo, gosto de estar à beira-rio, perto dos bares e da confusão, mas para os dias mais frios a cidade oferece outros espaços, mais abrigados.

Mogueiro. Era desta forma que gostava de ser tratado, mas nunca explicava porquê. Um dia perguntei-lhe quem estava na fotografia que tanto olhava e, desconversando, confessou-me que se chamava João António, um nome que ele próprio queria esquecer. “Faz parte do passado, de outra vida, quando ainda acreditava no amor”, segredou-me, enquanto baixava a cabeça para que não lhe visse os olhos humedecerem. Acendi um cigarro e fingi não ter percebido. Inspirei com pujança e libertei demoradamente o fumo tóxico em mim para ganhar tempo. Disse-lhe então que o Belenenses tinha passado mais uma etapa da Taça de Portugal, mas até isso parecia não o aliviar. “Já nada é divertido. É como se tudo se tivesse apagado dentro de mim”, retorquiu antes de dizer boa noite.

Na manhã seguinte sorriu-me, deu-me um abraço e murmurou-me que afinal ainda ia a tempo de ser corajoso e que os filhos iriam certamente entender a sua atitude. Nunca mais o vi, tal como não cheguei a ver a fotografia, mas soube uns dias mais tarde que pediu roupas lavadas na associação e que uma jovem o viera buscar algumas horas depois. Consta-se que era a filha.

Por vezes castigo-me pela vida a que me designei. Comprimo os músculos, os que ainda consigo sentir, cerro os punhos e mordo violentamente os lábios para censurar os pensamentos. Para esquecer os sussurros do mato, as gargalhadas noturnas com bafo a álcool barato e os gritos mudos daquelas jovens que obrigavam à força a ser mulheres e cujos rostos povoam na minha mente. Éramos todos filhos de uma nação perdida, que teimava em ganhar outras que não lhe pertenciam, com um orgulho cruel que a uns enriquecia e a outros sugava a alma.

A revolução fez-se nas ruas e é nelas que tenho de vivê-la até ao fim. A liberdade não se cumpriu para todos. Deixámos muitos cacos para trás, para que outros colassem. Trouxemos outros amarrados, mas meio em surdina. Varreu-se o lixo para debaixo do tapete e passámos a viver quase como se nada tivesse acontecido. Como se os gritos não continuassem lá, como se as marcas não permaneçam por cá.

Uns acomodaram-se na memória do esquecimento. Ficaram absorvidos pelos supérfluos prazeres momentâneos que apagam as grandes e verdadeiras causas por que valeria a pena ter lutado. Outros já cresceram sem saber e aos que teimam em lembrar, pobres traumatizados, dá-se um desconto. Porque são ridiculamente utópicos e ultrapassados ou simplesmente já não servem ao país.

Sobre o/a autor(a)

Trabalhadora da administração local
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