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Vícios privados, públicos subsídios

Ontem, o João Galamba respondeu aqui a um artigo escrito pela Marisa Matias, Mariana Mortágua e eu próprio, que pode ser lido aqui.

A resposta do João Galamba incide apenas sobre a nossa crítica ao imposto negativo, deixando o autor a resposta sobre o fim da justa causa, a descapitalização da segurança social, o cenário macroeconómico e a perspetiva sobre a Europa para outras núpcias. Nada de mal com isso. Os debates querem-se metódicos. Falemos então do imposto negativo. A medida proposta pelo PS consiste na aplicação de um imposto negativo (ou seja, de um pagamento) a todos os que, tendo trabalhado num determinado ano, não tenham obtido um rendimento que lhes permitisse atingir o limiar de pobreza.

Penso não fazer violência ao argumento do João Galamba se disser que ele considera que a nossa crítica não tem sentido porque o imposto negativo reproduz a mesma lógica do Rendimento Social de Inserção (RSI), que o Bloco, como é sabido, sempre defendeu.

1. Não entrarei nos problemas técnicos colossais relacionados com a aplicação desta medida porque a) a minha objeção é de princípio e não técnica e b) reconheço que os termos genéricos em que a proposta é formulada carecem de especificação que não cabia no relatório em que esta foi apresentada. Dito isto, parece-me muito evidente que a margem para o oportunismo e o abuso de uma medida como esta são enormes e difíceis de eliminar.

2. Sobre a questão de fundo, e em primeiro lugar, o RSI é uma prestação de tipo assistencialista que visa assegurar um rendimento mínimo a quem não tem nenhuma outra forma de atingir uma vida digna. A proposta do PS, pelo contrário, visa instituir um subsídio direto a empregadores que apostam na precariedade e/ou nos salários de miséria. São lógicas radicalmente diferentes e produzem consequências radicalmente diferentes, como explica melhor do que eu o José Neves aqui.

3. Em segundo lugar, o João Galamba afirma (e bem) que o apoio a todos e todas os que, trabalhando ou não, se encontrem abaixo do limiar de pobreza já era (e bem) o propósito do RSI. Se é assim, para quê esta nova medida? Se o limiar de rendimento for o mesmo, a medida é redundante e um absurdo administrativo. A única hipótese que tem sentido é a de que o limiar de pobreza considerado para aplicação do imposto negativo seja mais elevado do que o utilizado para o RSI e, portanto, cubra pessoas que o RSI não cobre. Esta ideia é gravíssima porque implica que o PS assume uma penalização implícita sobre todos os que não conseguem encontrar trabalho, criando dois limiares de dignidade: um para os que trabalharam e outro, mais baixo, para os que não conseguem encontrar trabalho. Isso mesmo é reconhecido no relatório do PS quando se diz, e cito, que o imposto negativo “Constitui um incentivo à integração no mercado de trabalho dado ser atribuído apenas aos indivíduos que declararam rendimentos do trabalho” e, mais à frente, que “a medida é um incentivo ao trabalho”. O PS retoma assim a pior retórica da direita que responsabiliza os desempregados pelo desemprego, em contradição total com o que o próprio relatório identifica (e aí bem) como principal problema da economia portuguesa (e causa do desemprego): a depressão da procura.

4. Em terceiro lugar, a proposta do imposto negativo torna ainda mais ensurdecedor do que já seria o silêncio do relatório sobre propostas que ataquem as causas da pobreza entre trabalhadores: a utilização ilegal generalizada dos recibos verdes, a escravatura moderna da Empresas de Trabalho Temporário, a falta de proteção dos trabalhadores (que o PS se propõe agravar com o fim da justa causa), a informalidade, etc.

Tudo isto deveria ser bastante básico num debate à esquerda. Dizer que esta proposta não é social-democrata é um eufemismo. Ela não é sequer liberal, pelo menos no sentido canónico do termo. Do que estamos a falar é da proposta de um intervencionismo estatal através do qual os contribuintes passariam a subsidiar os patrões ou, para ser mais preciso, os piores patrões. Como alternativa à direita, é obra...

Sobre o/a autor(a)

Eurodeputado e economista.
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