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Padura: “Reajo muito mal a que sempre me façam perguntas sobre a política cubana”

“Coño, que felicidade ser [o escritor norte-americano] Paul Auster, que fala das coisas que eu gosto de falar e ninguém lhe pergunta sobre o seu governo”, ironiza o escritor cubano Leonardo Padura, para quem a política está sempre no subtexto da sua obra, mas “escrevo livros e não faço política”. Por Jorge Berástegui.
Leonardo Padura: "Eu acho que o amor e o sexo são sempre libertadores". Foto de Casa da América
Leonardo Padura: "Eu acho que o amor e o sexo são sempre libertadores". Foto de Casa da América

Quando um jornalista de uma democracia liberal fala com um escritor cubano como Leonardo Padura (Havana, 1955), pode correr o risco de pensar que está a falar com uma espécie de sujeito exótico da História, tal como acontece a um turista ocidental que passeia extasiado pelas ruas de Havana porque ainda existem Chevrolets de 55 ou murais cheios de velhas palavras de ordem políticas que já não se ouvem em quase lugar algum. Mas depressa percebemos que a realidade é bem mais normal: que se pedes um café e eu um chá, que se trazes tabaco negro e eu te roubo uma passa, que vamos para esse terraço, que está mais tranquilo, que esse toldo parece que vai cair, que vamos falar de literatura e não de política...

E assim começou a conversa com Padura, o escritor de romances e contos, o jornalista, o guionista, que a princípios dos anos oitenta começou a trabalhar como um singelo revisor na revista cultural cubana El Caimán Barbudo, e que agora é um imprescindível do catálogo da editorial Tusquets, na qual acaba de publicar uma recompilação dos seus melhores contos, Aquello estaba deseando ocurrir”. Exatamente no momento em que o seu personagem detetive Mario Conde está prestes a saltar para o ecrã pela mão do realizador Félix Viscarret, num projeto de quatro filmes em cujos guiões tem estado a trabalhar com a sua esposa. E, como se fosse pouco, acaba de estrear em Espanha o filme “Regresso a Ítaca”, do realizador Laurent Cantet, com guião seu e inspirado num dos seus romances, que foi retirado do cartaz do Festival de Cinema de Havana pelo seu tom crítico, mas que vai finalmente estrear em Cuba, segundo o El País.

Às vezes é difícil safar-se das desventuras da política, como reflete a própria obra de Padura, ainda que sempre de um modo pessoal e elaborado...

Como reage ao facto de lhe perguntarem sempre pela situação política de Cuba quando o entrevistam?

Reajo muito mal. Escrevi há quatro ou cinco anos uma longa crónica intitulada “Queria ser Paul Auster”. Estava numa viagem que coincidiu com o momento de transição entre Fidel e Raúl, e toda a gente me perguntava quem ia governar. Então li uma entrevista a Paul Auster numa revista, em que as perguntas eram sobre literatura, cinema e basebol, e disse a mim mesmo: “Coño, que felicidade ser Paul Auster, que fala das coisas que eu gosto de falar e ninguém lhe pergunta sobre o seu governo”. A política está sempre no subtexto do escritor, e é uma preocupação constante no caso dos cubanos. Mas é algo desgastante, porque tens de voltar ao mesmo tema e explicar coisas para as quais nem tu mesmo tens resposta. No caso de Espanha, às vezes fazem-me perguntas sobre Cuba como se fosse um tema doméstico, como se fosses catalão e te estivessem a perguntar sobre a Catalunha.

Mas nós jornalistas insistimos... Chega a incomodá-lo?

Às vezes, porque há jornalistas que começam a entrevista a dizer: "E o regime castrista?" Quando alguém começa a entrevista qualificando o governo cubano como regime, tu já sabes que vem com uma visão muito preconceituosa da realidade cubana. É a mesma coisa quando te dizem: "O companheiro general Raúl Castro..." Isso limita o espaço de diálogo. Acho que a opinião política do jornalista deve estar num nível que permita ao entrevistado exprimir as suas opiniões, sem o induzir, porque não estás a entrevistar um político, estás a entrevistar um escritor. Se eu fosse o responsável de um Estado no México onde está a florescer o crime, entenderia evidentemente que começassem por aí, mas sou um escritor, escrevo livros e não faço política. Não milito.

Mas suponho que é consciente de que, de que de alguma forma, representa a Cuba contemporânea, não?

Não gosto que me identifiquem com nada. Sou um escritor que escreve de maneira individual, solitária, que faço muito esforço com cada livro. O que depois os livros representam é o resultado do meu trabalho, mas também do efeito que o próprio livro cria na sua vida comercial, editorial, cultural. No outro dia, Paco Ignacio Taibo dizia uma coisa muito simpática: “Não me digam que represento ninguém, porque mal me represento a mim mesmo". Comigo acontece mais ou menos o mesmo. E mesmo sendo consciente que o facto de me identificarem como o escritor de uma possível visão da Cuba contemporânea implica alguma responsabilidade, há outras visões noutros escritores, como Juan Gutiérrez ou Wendy Guerra.

Vamos ao livro de contos: a guerra de Angola está muito presente. Não tinha consciência de que essa guerra tivesse tido tanto impacto nalgumas gerações de cubanos...

A minha foi a geração que apoiou Angola como soldados, não como altos graus militares, que foi o caso das gerações anteriores. Os jovens que foram para Angola tinham vinte e tantos anos nos 70. Mesmo que não se possa dizer que fosse uma coisa traumática – em primeiro lugar, porque ganhamos a guerra; e em segundo lugar, porque houve muito poucas baixas cubanas, e as que houve, foram por acidentes e doenças –, sim deixou impressões psicológicas: eu estive em Angola em 85 e 86, trabalhando como jornalista, e foi uma experiência muito forte em muitos sentidos. Foi a primeira vez que estive fora de Cuba. Pela primeira vez, via a miséria no seu grau mais supremo. Pela primeira vez, convivia com pessoas que não conhecia. No primeiro dia que cheguei a Luanda levaram-nos a um treino e depois disseram-nos: “Tu dormes com fulano, mengano e cicrano". E deram-me uma espingarda e um carregador. Estava separado de toda a família, e isso afetou-me muito. No entanto, também encarávamos aquilo como a coisa mais normal do mundo. Diziam-te: “Foste selecionado para ir para Angola como jornalista, ou como combatente...” E a gente ia.

Nesse tipo de circunstâncias complicadas, o amor e o sexo parecem a verdadeira sustentação dos contos, em vez dos grandes discursos... Parecem os únicos elementos verdadeiramente libertadores de algumas histórias.

Eu acho que o amor e o sexo são sempre libertadores. E, no caso cubano, muito, porque Cuba é um país com um alto nível de sensualidade. Isso em Cuba é uma coisa que está à flor da pele nas pessoas. E cria conflito, ajuda a ter uma relação dinâmica entre as personagens e pode ser motivo literário. Por isso estão tão presentes na minha obra, porque em Cuba se manifestam de uma maneira muito diáfana, com muito poucos preconceitos, em comparação, por exemplo, com a sociedade espanhola, onde tu sentes que ainda há determinados elementos que travam a sexualidade das pessoas.

Além disso, descreve cenas sexuais para todos os gostos, de todas as maneiras...

Claro, é que como é uma coisa que se expressa com absoluta naturalidade, pois aparece desde as manifestações mais escatológicas ou agressivas até às mais normais e às mais românticas, para dizê-lo de alguma maneira.

Outra constante destes contos é o gosto pela arte. Alguns das personagens destes contos sonham com ver Velázquez no Prado ou visitar Veneza. São como pequenos prazeres cosmopolitas?

Esses personagens são desprendimentos de mim, das minhas preocupações, da minha forma de entender a vida, a cultura, o conhecimento do mundo através da criação artística. E não é casual que apareçam nas minhas histórias os fantasmas de Velázquez, de Salinger ou de Hemingway, porque são fantasmas que me acompanham a mim também.

Não há uma verdadeira tensão entre essas ambições culturais das personagens e a impossibilidade de a maioria dos cubanos visitarem este tipo de lugares?

Sim e não. Porque apesar de no Museu do Prado haver uma bicha permanente, a quantidade de pessoas no mundo que podem entrar para ver as obras de Velázquez é ínfima. Ainda que seja verdade que em Cuba há limitações culturais que são de tipo político e económico. No económico, um cubano não pode comprar um bilhete de avião para ver a Acrópole na Grécia, como também não pode gastar 20 euros para comprar um livro importado, porque é o que ganha num mês. E no político, porque até há muito pouco tempo não podíamos sair se não fosse com permissões oficiais.

E no entanto, em Cuba há muita gente que conhece Velázquez?

Claro, é que estamos a falar de um país com um nível cultural muito alto. E o nível de consumo cultural é elevado mesmo com todas as limitações, porque apesar de se publicarem pouco livros, de se importarem poucos livros, as coisas partilham-se. Os exemplares de Paul Auster que há em minha casa foram lidos por 25 pessoas. Um filme que aqui em Espanha é visto por uma pessoa com a sua família, em Cuba converte-se num produto social. E isso nos salvou em muitos casos.

Vou contar-lhe um episódio que tem envolvimentos políticos: uma amiga minha cubana que estava a fazer uma estadia no Equador porque era professora universitária não conhecia quem era Cabrera Infante. Estranho?

Em Cuba, todo aquele que realmente quis ler Cabrera Infante, leu. Nos anos 70, quando nós estávamos na universidade e nos encontrávamos no período mais ortodoxo, politicamente falando, onde tudo era branco ou preto, de uma forma ou de outra lemos “Três Tristes Tigres” ou “Havana para um Infante Defunto”. No meu caso, foi um escritor que me fez descobrir um universo linguístico do qual me apropriei à minha maneira: a linguagem havaneira literária. Se te impões lê-lo, lês. Os escritores cubanos, todos, leram Cabrera Infante.

Mas, e a população geral, os que não são escritores?

Menos, menos... Mas acho que tem a ver com um problema de acesso, porque os seus livros não são publicados em Cuba. Como quando eu escrevi sobre Paul Auster: toda a gente me perguntava onde se podiam obter os seus romances.

Num dos contos deste livro, há um escritor que dá oficinas literárias habitualmente para ganhar a vida, enquanto uma das suas alunas, uma anciã, espera ansiosa a oficina e a oportunidade de apresentar o que escreve. Por que essa personagem?

Em Cuba, nos anos 70 e 80, criou-se uma estrutura burocrática de trabalho cultural, e lembro que havia um plano do Ministério de Cultura para a criação, pelo qual devia haver 10 instituições culturais básicas em cada município: um museu, uma casa da cultura, uma oficina literária, etc. Era a mesma coisa se num lugar houvesse boas condições para ter um coro e noutro para uma oficina literária: nos dois tinha de haver ambas coisas, era uma ordem. Eu jogo com essa burocratização, porque além do mais muitos dos meus colegas trabalharam como assessores literários nessas oficinas. Eu também estive quase, mas nessa altura surgiu o trabalho na revista. O que quer essa personagem é escrever e estar com a sua mulher, e o trabalho da oficina é semelhante ao de quem serve neste café. Nada mais. Mas depois havia as pessoas que iam a essas oficinas com muitas ilusões. No conto há um jogo entre essa ilusão inocente e o conhecimento cínico do escritor.

Pode dizer-se que entre o exílio de alguns escritores cubanos e o excesso de burocratização na ilha faltou um verdadeiro fermento para os escritores mais jovens?

Não acho, de maneira nenhuma, que fosse assim. Havia oficinas às quais ia gente aficionada... É verdade que quando burocratizas a cultura, a congelas. Mas também havia outras coisas. Nós, por exemplo, criámos uma oficina na universidade entre estudantes de Humanidades que tinham uma preparação e um interesse literário bem mais definido. Foi um lugar de intercâmbio de ideias e de surgimento de relações que duram até hoje entre muitos narradores e poetas. Agora, em Cuba, existe desde há 10 anos uma escola para escritores onde se dão oficinas literárias dirigidas por um escritor que se chama Eduardo Heras León, e é incrível a quantidade de gente jovem que está a sair de lá e que escreve coisas notáveis.

Num de seus contos, há uma personagem que olha do seu escritório um menino que joga basebol. Então dá-se conta que os seus sonhos foram sepultados por um verdadeiro seguidismo político... É uma crítica à militância revolucionária em Cuba?

Eu acho que estes contos são bem mais universais que os meus romances, apesar de serem histórias muito pequenas. O que ocorre aqui é que este personagem chegou a um ponto de sua maturidade e se dá conta de que se converteu num burocrata de merda. Porque entre os propósitos das pessoas e o que no final conseguem, por limitações sociais, económicas, políticas, pessoais e familiares, sempre há uma distância, sempre. Esta personagem vê nesse menino aquele que ele mesmo foi, e que se encheu de sonhos que não pôde conseguir. Isto está contextualizado em Cuba e tem razões cubanas, mas pode ser lido de maneira universal, porque pode ocorrer em qualquer lugar do mundo, pode ocorrer a um francês, a um espanhol, a um finlandês.

Há dois suicídios nestes contos. Preocupa-se especialmente com este tema?

Para mim, o suicídio é uma obsessão puramente literária. Sabemos que em Cuba há um índice de suicídios bastante alto, mas não conhecemos os dados. Há muitas estatísticas em Cuba que não são conhecidas, apesar de nos últimos anos se começaram a publicar mais. Esta é uma das que se desconhecem, creio. Mas o meu interesse pelo suicídio provavelmente tem mais a ver com a importância de Hemingway na minha formação. Em Hemingway, o suicídio está muito presente. Também em Salinger: o génio da Família Glass suicida-se numa praia da Flórida.

Também descreve muito bem o mundo da marginalidade em Havana. Tem muito contacto com esses ambientes?

Em Cuba, esse mundo marginal é bastante visível se tu o queres ver. Há muito poucas pessoas que vivam em níveis que não tenham contacto com este mundo. Eu vivo num bairro de Havana, um bairro normal, um bairro de toda a vida, e aí me ligo muito facilmente com as pessoas. E ainda que seja um bairro popular, não é um bairro marginal, mas há sim atitudes e pessoas marginais que conheço e com quem converso. Não é uma coisa exótica para mim, não tenho de procurá-la, ela vem ter comigo, e tenho uma relação dinâmica e normal com ela.

O Leonardo Padura é uma referência no romance policial... Perguntava-me quais foram os autores fundamentais para a sua formação neste género...

Hammet e Chandler foram os primeiros. Mas uma influência catalisadora foi a de Vázquez Montalbán. Descobri uma literatura policial escrita em língua espanhola num país da periferia do centro do romance policial, que estava no mundo anglo-saxão e em França. Era uma literatura de uma grande qualidade e com uma perspetiva social muito evidente. E foi como um catalisador que me disse: "Este é o caminho pelo qual podes entrar e seguir".

Nesse caminho há também muita tendência à melancolia, não?...

A melancolia e a nostalgia são muito literárias, e à medida que vai passando o tempo, vou-me tornando mais melancólico porque vou-me tornando mais velho. No caso de Mario Conde, é um elemento essencial da sua personalidade, porque também o é da minha. Eu sou um homem com uma grande nostalgia por um passado no qual fui jovem, tive sonhos, desfrutei de coisas das quais já depois não pude desfrutar... Apesar disso, sou uma pessoa abençoada pelo que houver lá em cima, porque tudo o que pude sonhar que ia conseguir com o meu trabalho é ínfimo ao lado do que consegui. Nunca teria pensado que ia conseguir o Prémio Nacional de Literatura de Cuba ou que ia publicar na Tusquets, mas não deixo de sentir nostalgia por uma época em que éramos mais pobres e mais felizes, como dizia Hemingway...

E até aqui chegou a conversa, porque além do mais o sol ia-se deslocando e, no final, o fresquinho da incipiente primavera madrilenha entrava com facilidade no corpo. Foi-se embora Padura com a sua esposa pela rua, mas, pouco tempo depois, Raúl Castro e Obama encontraram-se na Cimeira das Américas para abrir uma nova etapa na história das relações entre Cuba e os Estados Unidos. De novo, a política. Mas o momento valia a pena, e tinha de mandar um e-mail ao escritor com uma pergunta, que ele voltou a responder com toda a amabilidade do mundo.

Após ver as imagens e ouvir os históricos discursos de Obama e de Castro, que sensação teve? O que lhe veio à cabeça?

Pensei muitas coisas, senti muitas coisas. Tenho-me congratulado por estar vivo para ver uma coisa assim, algo que jamais pensei que veria... E pensei no futuro. Oxalá que esses apertos de mão de Raúl e Obama – que foram vários – comecem a mudar para valer uma história e o diálogo se imponha à hostilidade, o entendimento à prepotência, a proximidade à distância. Sinto que não vai ser nada fácil, mas que podemos estar no princípio de algo melhor. De um tempo de diálogos... Essa é a palavra chave: diálogo.

26/04/15

Retirado da Sin Permiso

Publicado originalmente no El Huffington Post

Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net

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