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Quantos refugiados cabem nesta Europa?

Esta Europa arranjou enquadramentos legais que impedem pessoas que vivem em condições sub-humanas de passar as suas fronteiras, determinou que quem quiser atravessar essa fronteira não terá condições de segurança para o fazer.

Receita para um herói

Toma-se um homem
Feito de nada como nós
Em tamanho natural
Embebece-lhe a carne
De um jeito irracional
Como a fome, como o ódio

Depois perto do fim
Levanta-se o pendão
E toca-se o clarim...

Serve-se morto

(Reinaldo Ferreira)

Eu nasci em Moçambique, branca. Filha de mãe moçambicana, branca, descendente de portugueses. E filha de pai português, branco. A memória que tenho da nossa vinda para Portugal é de que a coisa foi complicada. Primeiro viemos com a minha mãe. E só mais tarde veio o meu pai. Mais tarde ainda vieram os meus avós. E fui tendo a perceção de que deixámos para traz muita coisa. Aprendi, pela voz deles, palavras como saudade e nostalgia. Já cá, também assisti a uma integração complicada. Segundo ia percebendo, perderam-se uma série de direitos adquiridos em Moçambique e vir para Portugal foi, afinal, praticamente começar de novo. Na parte que me toca, tive uns amigos que, ainda que com alguma contenção, me deram a conhecer o que eram os retornados, como quem me desculpava, só porque não tinha responsabilidade pelo que tinham sido as opções dos meus pais ou dos meus avós. Aparentemente que foi complicado. Mas viemos. Ainda que houvesse uns laivos de desagrado por termos vindo, viemos. Ninguém pôde constranger a escolha dos meus pais e dos meus avós. Ninguém pôde decidir se éramos dignos de vir ou não. Ninguém conseguiu arranjar um enquadramento legal ou afim perante o qual estaríamos impedidos de passar uma fronteira que separa o que algumas pessoas assumem que são dois mundos diferentes. Ninguém determinou o grau de segurança com que atravessaríamos essa fronteira. Ninguém nos pôs a mão no peito para que não entrássemos. Ninguém nos colocou em risco de vida. Ninguém nos desconsiderou enquanto seres humanos. Ninguém sublinhou diferenças entre nós e os que já cá estavam. Ninguém foi conivente com o facto de que podíamos até viver em condições sub-humanas por ter calhado de nascer num sítio diferente deste, onde agora vivo e onde a minha filha nasceu. Ninguém me sentenciou à morte. Ninguém fez de mim heroína.

Hoje, pergunto-me: e se tivesse nascido noutro sítio? E se tivesse nascido noutra altura? E se tivesse nascido com outra cor? E se sofresse todos os dias as consequências de uma guerra que não tinha escolhido? E se vivesse em pobreza extrema? E se tivesse que depositar todas as minhas esperanças numa viagem de barco para mim e para a minha filha? E se tivesse que acreditar que do outro lado do mar estaria alguém que de certeza me resgataria? Mas pergunto-me sobretudo se é preciso estabelecermos paralelos como este para não aceitar o que está a acontecer. Talvez sim, ou provavelmente não. De uma forma ou de outra, é preciso levantar a voz e lutar para que não seja esta a nossa Europa.

Não é aceitável o que esta Europa está a fazer acontecer. Porque é na Europa que isto está a acontecer. E não está a acontecer à Europa. Esta Europa está a constranger as pessoas, a decidir quem é digno de vir, esta Europa arranjou enquadramentos legais que impedem pessoas que vivem em condições sub-humanas de passar as suas fronteiras, determinou que quem quiser atravessar essa fronteira não terá condições de segurança para o fazer, esta Europa coloca as pessoas em risco de vida, desconsidera-as enquanto seres humanos, esta Europa sublinha supostas diferenças entre alguns que já cá estão e os que vêm em fuga de situações inimagináveis de tão tenebrosas, esta Europa sentencia à morte centenas de pessoas, todos os dias, porque, por um laivo de esperança, decidem embarcar em direção a uma outra vida. Em resposta a cada uma das tragédias decorridas no Mediterrâneo, esta Europa demonstrou a sua preocupação com a situação. Criando o Frontex, o Eurosur, os centros de detenção (que até dão uns tostões a uns tubarões-abutre que por aí navegam) ou a Diretiva do Retorno. Para não falar da retirada de programas de resgate de imigrantes em situação de risco por operações de patrulha fronteiriça.

A urgência de inverter estas políticas é diretamente proporcional à urgência de combater as políticas de austeridade cujas consequências e narrativas se entranham de tal forma nas nossas vidas, que tolhem a nossa leitura da realidade e fazem com que sejamos nós a refugiar-nos. Refugiamo-nos passivamente numa pretensa distância, numa suposta inevitabilidade e numa fatídica condolência. E enquanto nos refugiamos e fazemos deles os heróis, não cessam os clarins.

Sobre o/a autor(a)

Deputada municipal e dirigente concelhia do Bloco de Esquerda do Porto
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