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Num hospital perto de si

As afirmações de Fernando Leal da Cunha, secretário de Estado adjunto da Saúde, quando confrontado com o estado dificilmente narrável das urgências hospitalares são o espelho de quem não as usa.

As urgências hospitalares não podem ser consideradas como locais de bem-estar. Desde logo, porque a urgência define o padrão e o contexto da aproximação clínica ao doente e porque um hospital não será nunca local recreativo, de prazer ou tubo de ensaio de rosas em laboratório.

Não podemos admitir que se instale a ideia de que uma urgência hospitalar possa viver numa espécie de caos organizado

Uma urgência hospitalar, em qualquer local do Mundo e sobretudo em momentos de crise, pode ser até um local de emergência máxima. O que não podemos admitir é que se instale a ideia de que uma urgência hospitalar possa viver numa espécie de caos organizado. Uma situação de emergência nas urgências é coisa bem diferente da rotina de um dia como os outros.

Não podemos abdicar da premissa e exigência de que um hospital seja um local de satisfação e de resposta necessária e adequada às demandas da vida. As afirmações de Fernando Leal da Cunha, secretário de Estado adjunto da Saúde, quando confrontado com o estado dificilmente narrável das urgências hospitalares são o espelho de quem não as usa. Se acha, como afirmou, que "os serviços de urgência em Portugal funcionam muito bem", convidemo-lo a passar uns dias na urgência de um hospital público. É, aliás, algo que devia constar do programa de escolaridade obrigatória de qualquer país dito civilizado: o confronto com o homem no seu lugar, com a importância e a medida das coisas, com o peso relativo de tudo quando comparado ao inferno de não ter saúde ou ter um prazo para a vida.

A falta de humildade do secretário de Estado na reacção à realidade bem patente na reportagem "1 hora e 35 minutos" de Ana Leal na TVI, afirmando que "o que nós vimos foram pessoas bem instaladas, bem deitadas (...), em macas estacionadas em locais apropriados", é desanimante sobretudo para "os profissionais muito esforçados" que também refere. Porque não são só os doentes a padecerem de estupefacção perante as suas declarações: são também os profissionais de saúde, médicos, enfermeiros e técnicos auxiliares que percebem que nada vai mudar para melhor porque a existência do problema nem sequer é reconhecida e admitida. De resto, para Fernando Leal da Cunha, os médicos que deram a cara são "reputados e reconhecidos militantes do Partido Comunista e da Oposição". Aí está a revisitação da célebre tese das forças do mal onde os comunistas comem criancinhas ao pequeno-almoço. Agora, até comem imagens reais e provas hospitalares. É o tal "homem novo", o comunista digital, ainda e sempre papão.

Duas enfermeiras tiveram que provar, à margem da lei, que continuam a amamentar os seus bebés através de "expressão mamária" (expressão primorosa do presidente do Conselho de Administração do Hospital de Santo António, Sollari Allegro). Terão sido dadas às enfermeiras mais duas opções para a prova da presença de leite. Se isto não é grave, não sei o que seja

A verdade é que a culpa já não é do frio, do peso do Inverno, da epidemia da gripe ou da súbita afluência de doentes. Como confirma o bastonário da Ordem dos Médicos, José Silva, a reportagem da TVI que se "infiltrou" durante um mês em 15 hospitais, confirma a realidade dos hospitais públicos em Portugal com a gritante falta de médicos e enfermeiros (que chegam a acumular 300 horas a mais de trabalho). O aviso não veio do frio mas até foi servido de forma gelada pela própria troika: já em 2013 os nossos "queridos invasores VIP" alertavam para a impossibilidade de efectuar mais cortes na despesa com saúde pública. O ministro da Saúde, Paulo Macedo, não ouviu a troika ou não conseguiu que Passos Coelho ouvisse outra coisa. Mais e sucessivos cortes estacionaram o autocarro da saúde pública na garagem, sem desligar o motor. Com tanto monóxido de carbono, a asfixia foi inevitável.

Não fossem os profissionais de saúde maioritariamente competentes e implicados, estaríamos perante a expressão máxima do limite e da sua ultrapassagem. A modernização, readequação e desenvolvimento do sistema nacional de saúde não é só a prova de racionalidade económica para a qual Paulo Macedo veste garbosamente a camisola amarela. É sobretudo uma prova de humanidade e de civilização de um país para com os seus. Ver a realidade como ela é. Exemplo paradigmático, em dois hospitais do Porto: duas enfermeiras tiveram que provar, à margem da lei, que continuam a amamentar os seus bebés através de "expressão mamária" (expressão primorosa do presidente do Conselho de Administração do Hospital de Santo António, Sollari Allegro). Terão sido dadas às enfermeiras mais duas opções para a prova da presença de leite. Se isto não é grave, não sei o que seja. Já agora, convém salientar que lá porque dão leite não quer dizer que amamentem.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 21 de abril de 2015

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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