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Faleceu o escritor uruguaio Eduardo Galeano

O escritor uruguaio Eduardo Galeano morreu esta segunda-feira aos 74 anos em Montevidéu, devido a complicações de um cancro de pulmão, de que já fora tratado em 2007. Autor de um estilo inconfundível, influenciou desde os anos 70 gerações de jovens latino-americanos e de todo o mundo, preocupados com os paradoxos que marcam um planeta moldado pelo capitalismo.
Galeano: os seus parágrafos curtos provocavam reflexões mais estimulantes do que pesadas teses sociológicas. Foto de Jose Francisco Pinton, domínio público
Galeano: os seus parágrafos curtos provocavam reflexões mais estimulantes do que pesadas teses sociológicas. Foto de Jose Francisco Pinton, domínio público

Na apresentação do livro “Espelhos”, publicado em 2008, Eduardo Galeano enumerava alguns “Paradoxos andantes”, na história do mundo, que ele considerava estimulantes:

“O Aleijadinho, o homem mais feio do Brasil, criou as mais belas esculturas da era colonial americana.

“O livro de viagens de Marco Pólo, aventura da liberdade, foi escrito na prisão em Génova.

“'Don Quixote de La Mancha', uma outra aventura da liberdade, nasceu na prisão de Sevilha.

“Foram netos de escravos os negros que criaram o jazz, a mais livre das músicas.

“Um dos melhores guitarristas de jazz, o cigano Django Reinhardt, só tinha dois dedos na sua mão esquerda.

“Não tinha mãos Grimod de Reynière, o grande mestre da cozinha francesa. Com garfos escrevia, cozinhava e comia”.

Era assim que fluíam as palavras nas páginas deste grande escritor uruguaio, cuja obra deixou marcas profundas em todo o continente latino-americano e cuja influência chegou ao movimento alterglobalização e às acampadas dos indignados de Madrid.

As Veias Abertas da América Latina”

O seu livro mais famoso foi “As Veias Abertas da América Latina”, obra que esgotou sucessivas edições em todo o mundo (mais de 30 em inglês, pelo menos 46 no Brasil, só para dar dois exemplos) e era presença obrigatória nas estantes dos militantes de esquerda do continente nos anos 70.

As vendas desta obra obrigatória, que o autor considerava "uma contra-história económica e política com fins de divulgação de dados desconhecidos", receberiam um inesperado incentivo em 2009, quando o então presidente Hugo Chávez ofereceu o livro ao presidente dos EUA, Barack Obama. As vendas do livro na Amazon saltaram imediatamente para o primeiro lugar. "Ele (Chávez) entregou a Obama com a melhor intenção do mundo, mas deu de presente a Obama um livro numa língua que ele não conhece. Então, foi um gesto generoso, mas um pouco cruel", comentaria mais tarde Galeano. Já Obama contra-atacaria com um vídeo humorístico, em que afirmava que Chávez lhe oferecera “Peter Pan”.

Piadas à parte, os livros de Galeano eram profundos e fáceis de ler, mas aqueles parágrafos curtos provocavam reflexões mais estimulantes do que pesadas teses sociológicas.

Papel determinante na imprensa

Eduardo Hughes Galeano nasceu em Montevidéu no dia 3 de setembro de 1940, e começou muito jovem no jornalismo, mas antes desempenhou as mais variadas profissões – como pintor de letreiros, mensageiro, datilógrafo e caixa de banco. Aos 14 anos, vendeu a sua primeira charge política para o jornal El Sol, do Partido Socialista. Foi chefe de redação do semanário Marcha, na década de 1960, um influente jornal que tinha como colaboradores Mario Vargas Llosa e Mario Benedetti. Foi também diretor do jornal Época.

 Foi chefe de redação do semanário Marcha, na década de 1960, um influente jornal que tinha como colaboradores Mario Vargas Llosa e Mario Benedetti. 

As Veias Abertas da América Latina foi publicado em 1971 e, dois anos depois, o autor foi obrigado a exilar-se na Argentina devido ao golpe militar que impôs no seu país natal uma ditadura que permaneceria 11 anos no poder.

Na Argentina, Galeano foi um dos fundadores e o diretor da revista cultural Crisis, publicada entre maio de 1973 e agosto de 1976 e uma das mais influentes publicações culturais do continente. Para se ter uma ideia da sua importância, basta citar que entre os seus colaboradores estavam Jorge Luis Borges, Ernesto Sabato, Mario Benedetti, Ernesto Cardenal, Julio Cortázar, e escritores menos conhecidos na época mas que seriam marcantes mais tarde, como Ricardo Piglia. Escritores latino-americanos consagrados, como Jorge Amado, Alejo Carpentier, Gabriel García Márquez apresentaram, nas suas páginas, pré-publicações de obras suas. Outras revistas, como a Versus, no Brasil, receberam a influência decisiva da Crisis.

O golpe militar na Argentina de 1976 forçá-lo-ia a exilar-se de novo, desta vez em Espanha, onde permaneceu até 1985, ano em que regressou ao Uruguai.

Obra premiada

Ainda em solo espanhol, Galeano começou a escrever “Memória do fogo”, uma trilogia sobre a História das Américas. Passando pelos povos pré-colombianos até o recuo das ditaduras militares na região, Galeano levou para as páginas personagens como generais, artistas e revolucionários.

Em 1999, foi o primeiro autor homenageado com o prémio à Liberdade Cultural, da Lannan Foundation (Novo México). É autor de "De pernas pro ar", "Dias e noites de amor e de guerra", "Futebol ao sol e à sombra", "O livro dos abraços", "Memória do fogo" (que engloba "Os nascimentos", "As caras e as máscaras" e "O século do vento"), "Mulheres", "As palavras andantes", "Vagamundo", "As veias abertas da América Latina", "Os filhos dos dias", “Espelhos”.

Recebeu o prémio Casa de Las Américas em 1975 e 1978, e o prémio Aloa, promovido pelas editoras dinamarquesas, em 1993. A trilogia "Memória do fogo" foi premiada pelo Ministério da Cultura do Uruguai e recebeu o American Book Award (Washington University, EUA) em 1989.

Há outro mundo na barriga deste”

Ainda recentemente, em 2011, Galeano visitou a acampada da Porta do Sol, em Madrid, onde lamentou o mundo “infame, muito pouco alentador” em que vivemos. Mas a sua mensagem era, como sempre, otimista: “Há outro mundo na barriga deste, esperando. Que é um mundo diferente. Diferente e de parto difícil. Não nasce facilmente. Mas com certeza pulsa no mundo em que estamos”, afirmou, reconhecendo esse outro mundo em manifestações espontâneas como a da Praça Catalunha, em Barcelona, ou na Porta do Sol, em Madrid.

Es tiempo de vivir sin miedo. (legendado)

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