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“Ciudadanos”: a falsa mudança

O Ciudadanos é a garantia que o sistema precisa quando os seus instrumentos tradicionais de dominação e representação política já não são úteis. É a garantia de que o declínio do PP e do PSOE não crie um vazio político que possa ser ocupado exclusivamente pelo Podemos. Artigo de Josep María Antentas.
Albert Rivera, líder dos Ciudadanos.

Precisamos de uma espécie de Podemos da direita, mais orientado para a iniciativa privada”, afirmava Josep Oliu, o presidente do quarto maior grupo bancário do Estado espanhol, o Banco Sabadell, a 25 de junho de 2014, um mês depois da fulgurante erupção do Podemos nas eleições europeias. Dito e feito. Aqui está. Justo a tempo. Pronto para evitar a catástrofe. Pronto para sustentar o bipartidarismo ou garantir que das suas cinzas tudo fique (mais ou menos) como está.

O Ciudadanos é a garantia que o sistema precisa quando os seus instrumentos tradicionais de dominação e representação política já não são úteis. É a garantia de que o declínio do PP e do PSOE não crie um vazio político que possa ser ocupado exclusivamente pelo Podemos. A função do partido de Albert Rivera é tanto facilitar a possibilidade de uma inesperada muleta de última hora para o bipartidarismo, como assegurar que em caso de colapso irreversível, o fim da alternância PP-PSOE não seja acompanhado de uma ruptura política, possibilitando uma transição ordenada para um pós-bipartidarismo onde tudo permanece intacto. Uma nova transição “exemplar”, nostálgica da primeira e dos seus consensuais homens de Estado, aquela que precisamente pôs de pé o que agora desmorona, é o que parece prometer Rivera. Uma saída do túnel da crise pelo centro. Ou seja, pela direita.

A mudança tranquila de Rivera é na verdade a mudança inexistente, a transformação sem conteúdo. A mudança cuja substância real se evapora no buraco negro das promessas não cumpridas. A sua mudança é a que deixa tudo igual, que se nutre da ilusão da alternativa sem ruptura, da falácia de um futuro favorável à maioria, a que chega sem molestar os de cima ou provocar a sua ira. Encarnando uma regeneração superficial, epidérmica, cuja única profundidade é a leveza das suas intenções. Vendendo esperança vazia de conteúdo, a suficiente para seduzir um eleitorado despolitizado, de certa forma disposto a deixar-se enganar (uma vez mais, mas desta vez não pelos mesmos de sempre) em sua vontade de acreditar numa mudança dentro das vias habituais.  A sua fórmula é a clássica combinação entre as promessas de renovação e moderação.  De propostas de transformação e regeneração mas dentro das normas que na realidade não deixem espaço para nada diferente,  mais próximas dos sonhos iludidos e individualistas do eleitorado centrista, que espera voltar a um cenário económico e social mais favorável às suas aspirações, dando a si mesmos e ao sistema uma segunda oportunidade. A sua ascensão faz-se sobre um fundo de despolitização depois de décadas de devastação e desestruturação social, de avanço do neoliberalismo e do consumismo, e de desorganização política e cultural da esquerda em todas as suas vertentes.

O Ciudadanos promete uma regeneração democrática desligada de uma modificação na política económica, desvinculando de facto a crise política da crise económica e social. Isola o descrédito do sistema partidário do modelo económico e social, algo que se apresenta como o eco da própria promessa de regeneração democrática, reduzida de facto a uma mera mudança de elites. Uma regeneração tão perigosa para o PP e PSOE como útil para uma reforma do regime em que as mudanças feitas sirvam apenas para impedir outras maiores, acompanhada de uma política neoliberal convencional (salpicada de promessas sociais pontuais isoladas e irreais dentro de um esquema neoliberal), e de uma defesa intransigente da unidade espanhola por parte, diga-se, de um partido com origem catalã. Todo ele envolto em ares de telegenia, renovação e modernidade. Uma regeneração pintada de centralismo nacional duro e ortodoxia económica é a melhor notícia que o Ibex 25, índice da bolsa espanhola, poderia receber. A melhor desde que o pesadelo Podemos começou.

Rivera é um iniciante na política espanhola. Mas não na política em geral. O seu partido começou a caminhada na Catalunha, em 2006, entrando no parlamento regional com 3% dos votos e 3 deputados, que revalidaria em 2010 depois de superar anos difíceis de dissenções internas e falta de coesão, e ampliaria até 9 deputados em 2012, ao obter 7,58% dos votos. No início surgiu como um partido que fazia do sentimento anticatalão o seu princípio de identidade, unido a uma retórica de regeneração contra os partidos tradicionais e um estilo renovador. Apoiado por um grupo de intelectuais catalães defensores da unidade espanhola, muitos deles próximos do PSOE e do Partidos dos Socialistas da Catalunha (PSC), o Ciudadanos evitou ser etiquetado de esquerda ou direita, aumentando a sua base eleitoral entre a base socialista catalã mais defensora do centralismo nacional, mesmo que apoiado pelos meios de comunicação mais conservadores, que viram no novo partido um instrumento contra o movimento independentista catalão. Terminada, já há algum tempo, a sua expansão entre o eleitorado socialista, o seu crescimento eleitoral recente na Catalunha tem se feito à custa dos votantes de um PP desgastado pelos cortes e pela corrupção. E é precisamente entre os eleitores de centro do PP que pretende continuar a sua expansão eleitoral no seu assalto à política espanhola. Os Ciudadanos pode fazer, assim, ao PP e ao UPyD o que o Podemos fez ao PSOE e Izquierda Unida.

Apesar da sua aureola fundacional de centro-esquerda e das suas intenções de escapar a qualquer etiquetagem ideológica, a trajetória do Ciudadanos no parlamento catalão foi marcada por uma faceta conservadora, apesar de cultivar um perfil “centrista”, apto para todos os públicos, exceto na sua imagem anticatalã. Muitas das suas votações mostram o conteúdo real do seu projeto regenerador: em 2014, o partido votou contra a introdução de um imposto que taxava os depósitos bancários e as heranças e absteve-se na proposta de taxação sobre a emissão de gases poluentes, assim como na lei dos horários comerciais, que restringia a proposta ultraliberalizadora do governo espanhol, ou mesmo ante uma moção que pedia a retirada do reacionário projeto de lei sobre o aborto apresentado pelo Ministro Gallardón. Sem esquecer, claro, a sua infame proposta, em abril de 2013, favorável à retirada do cartão de saúde aos imigrantes não regularizados, proposta que não por acaso Rivera se dispensou de assumir pessoalmente no parlamento, sempre disposto a cultivar uma imagem de moderação e equilíbrio. Expostas pela mão do seu novo assessor, Luis Garicano, economista de trajetória neoliberal da London School of Economics (LSE), as recentes receitas económicas do Ciudadanos para sair da crise, entre elas a proposta modelo de contrato único de trabalho, apontam também para uma clara visão pró-mercado e pró-empresarial. Poucas surpresas neste terreno se esperam na mudança tranquila de Rivera.

Vivemos um período de intensa volatilidade política, marcado por uma identificação partidária e um comportamento eleitoral “líquido” (utilizando a conveniente expressão de Zygmunt Bauman), no qual as velhas lealdades eleitorais se dissolvem sem que as novas estejam ainda solidificadas. Não sabemos se do bipartidarismo atual resultará um novo quadro marcado por quatro partidos, nem qual o peso relativo que PP, PSOE, Podemos e o Ciudadanos terão no novo terreno de jogo. Certamente  surgirão complicadas formas de governabilidade, em que todos estes partidos podem ficar presos num emaranhado de políticas, pactos e alianças duvidosas. E assim, o Ciudadanos sofrerá a médio prazo uma tensão crescente entre a sua razão de partido, que o empurra a curto prazo a não compactuar com o PP e o PSOE (a não ser que os seus dirigentes sejam muito curtos de vista e se conformem antes do tempo a um lugar subalterno no plano institucional) e a razão de Estado (e a razão da troika), que os pode empurrar a uma facilitação de acordo para a governabilidade depois das eleições autonómicas de 24 de maio e das futuras eleições legislativas.

A crise do bipartidarismo é inelutável e a situação política permanece insolitamente aberta, criando possibilidades reais de ruptura, mas cuja materialização se apresenta muito longe de estar assegurada. O risco a conjurar é o do modelo a quatro, que mesmo complexificando as formas de dominação e controlo político, não antecipe a necessária implosão descontrolada do atual sistema político que permita abrir uma dinámica constituinte, ao contrário da profunda agonia política e institucional que pode desembocar numa reforma desde cima, cavalgando as debilidade da auto-organização popular dos debaixo.

Publicado em Vientu Sur.

Tradução de Adriano Campos para esquerda.net

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