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O masculino genérico: uma questão gramatical ou um debate ideológico?
Quando, numa conversa entre várias pessoas, surge o tópico da linguagem inclusiva há sempre alguém que diz que é uma questão meramente gramatical, ou que a igualdade de género já é uma realidade porque está na lei, ou faz qualquer outro comentário que minimiza e desvaloriza o direito à representação linguística da identidade e o direito a uma igualdade entre mulheres e homens real e efetiva.
Esta 'liberdade gramatical' constitui um importante mecanismo de reforço de um modelo em que o homem se torna a medida do humano, a norma ou o padrão. O uso do masculino genérico hierarquiza as relações de género, colocando as mulheres numa posição subalterna à dos homens em todas as áreas do pensamento
O sistema gramatical de género em Portugal tem como norma a concordância de género simétrica, que prescreve o uso do género gramatical masculino para designar o sexo masculino e do género gramatical feminino para designar o sexo feminino. Essa igualdade é desfeita quando ao valor do género gramatical masculino se junta o outro valor, dito genérico, que permite, por extensão, que o género gramatical masculino se possa aplicar também aos seres humanos do sexo feminino, possa designar também as mulheres.
Esta 'liberdade gramatical' constitui um importante mecanismo de reforço de um modelo em que o homem se torna a medida do humano, a norma ou o padrão. Neste modelo patriarcal, encobertas na referência linguística do masculino genérico, as mulheres tornam-se praticamente invisíveis na linguagem, mas mais do que uma mera sub-representação linguística das mulheres o uso do masculino genérico hierarquiza as relações de género, colocando as mulheres numa posição subalterna à dos homens em todas as áreas do pensamento.
Maria Isabel Barreno realizou, em 1985, um estudo sobre a discriminação das mulheres em que procedeu à análise do discurso escolar e das imagens dos manuais utilizados no ensino secundário, concluindo que estes revelam uma assimetria de poder, quer na descrição da vida profissional, quer social de mulheres e homens que sumariza na expressão 'falso neutro'. O falso neutro denuncia a utilização do masculino genérico, isto é, o uso do género gramatical masculino para designar o conjunto de homens e mulheres. Um exemplo é a utilização frequente das expressões “o Homem” ou “os homens” como sinónimos de a “a Humanidade”. Segundo a autora “As palavras não são escolhidas arbitrariamente. Homem corresponde a ser humano por se ter achado, na sociedade patriarcal em que nasceu e/ou se formou o latim, que ele era o legítimo e bastante representante do ser humano – a mulher já estava, então, na sombra do doméstico, da família: reduzida a 'companheira', a procriadora sem direitos.”1
Insisto na importância de eliminar o uso do masculino genérico ou do falso neutro. Também porque a linguagem é um dos elementos chave da transmissão da cultura; porque há muito a representação linguística da identidade é um direito; e ainda porque promover a igualdade entre mulheres e homens é uma das tarefas fundamentais do Estado e um dever de cidadania
Graça Abranches escreveu, em 2011, que é um erro pensar que as práticas discursivas sexistas existem desde o princípio dos tempos e que são uma parte constitutiva da estrutura básica das línguas. Segundo a autora “(...) as justificações dadas pelos gramáticos para a introdução e obrigatoriedade do uso do masculino genérico estavam invariavelmente ligadas a crenças sobre o que deviam ser as relações apropriadas entre homens e mulheres na sociedade (os primeiros deveriam sempre ter “precedência” sobre as segundas), e não a quaisquer convicções de natureza científica sobre a gramática, a etimologia ou qualquer outro fenómeno primariamente linguístico. São exemplos paradigmáticos de “discurso ideológico” em estado puro: a linguagem deve expressar a lei natural da superioridade masculina, e por isso se determina o uso obrigatório do masculino genérico.”2
Paula Silva e Luísa Saavedra, no guião de educação, género e cidadania, referem a importância de reconhecer o carácter discriminatório da linguagem e escrevem que “É importante ter consciência de que a alteração do uso da linguagem, embora não mude, por si só, a hegemonia masculina, pode, no entanto, permitir identificar posições alternativas. (…) Neste sentido, defender a utilização de uma terminologia não sexista pode mudar a percepção dos significados atribuídos às mulheres e aos homens. A linguagem, ou o discurso, dá-nos a possibilidade de provocar mudanças, (…) Este poder, exarado na linguagem, que transporta representações sociais dominantes no que se refere às questões de género, expande-se aos materiais pedagógicos e didácticos, como sejam os manuais escolares.”3 E também na produção legislativa e na comunicação social e institucional.
Assim, e retomando a reflexão sobre o sexo da cidadania, insisto na importância de eliminar o uso do masculino genérico ou do falso neutro. Também porque a linguagem é um dos elementos chave da transmissão da cultura, através da qual se orientam e dinamizam os papéis sociais; porque há muito a representação linguística da identidade é um direito; e ainda porque promover a igualdade entre mulheres e homens é uma das tarefas fundamentais do Estado e um dever de cidadania.
Defender a utilização de uma linguagem não sexista e o direito à representação linguística da identidade das mulheres é um pequeno passo mas um passo essencial para a assegurar a igualdade efetiva entre mulheres e homens
Em abril de 2015, são pelo menos 5.515.578 as cidadãs que não veem reconhecidos, plenamente, os seus direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação, nem sequer a uma vida livre de violência.
Defender a utilização de uma linguagem não sexista e o direito à representação linguística da identidade das mulheres é um pequeno passo mas um passo essencial para a assegurar a igualdade efetiva entre mulheres e homens.
Uma sociedade que se polarizou em torno de um acordo ortográfico entre dois países bem podia deixar de se escudar na gramática e debater o uso sexista da linguagem. E não, não é apenas uma questão gramatical, mas sim um debate ideológico e uma questão de direito, dos direitos das mulheres.
1 BARRENO, Maria Isabel (1985). O Falso Neutro: Um estudo sobre a discriminação sexual no ensino. Lisboa, Instituto de Estudos para o Desenvolvimento. pp.84
2 ABRANCHES, Graça (2011). Como se fabricam as desigualdades na linguagem escrita. Cadernos Sacausef. Lisboa, n. 8. p.33
3 SILVA, P. & SAAVEDRA, L. (2009). Género e currículo. Em Teresa Pinto (coord.), Guião de educação, género e cidadania. 3º ciclo do ensino básico. Lisboa, Comissão para a Cidadania e Igualdade do Género. p.68
Comments
Leia: http://cienciahoje.uol
Leia: http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/palavreado/questao-de-genero
E deixe-se à ciência da língua o que é da ciência língua. Nem tudo é ideologia, felizmente!
O artigo contém demasiados
O artigo contém demasiados erros científicos, e demasiadas afirmações tão taxativas quanto infundadas, para estar a esmiuçar tudo ponto por ponto. A autora parece acreditar que uma língua é um artefacto, ou que foi um artefacto num passado mítico em que as palavras correspondiam ao real - em que o género gramatical, por exemplo, correspondia não só ao sexo biológico, mas às representações que os nossos distantes antepassados faziam dos papéis de homens e mulheres. Temos assim que dizer "homens" para designar homens e mulheres reflecte, ou reflectiu, a subordinação destas àqueles. Seria curial perguntar se também estamos a falar de relações sociais de dominação quando dizemos "gatos" para designar gatos e gatas.
As línguas humanas são objectos naturais. Resultam de uma evolução e contêm, tal como os organismos vivos, vestígios de estádios anteriores. Têm também uma economia que lhes é própria: se a palavra "professores" serve a sua função de designar professores e professoras - independentemente de isto poder reflectir um período histórico em que quase todos os professores eram homens - a língua não vai por si própria criar mecanismos mais complexos para obter o mesmo resultado. Mesmo admitindo - e, na ausência de provas, é admitir muito - que a economia de uma língua copia fielmente estruturas sociais passadas ou presentes, declarar que um uso presente da língua perpetua um uso social passado faz tanto sentido como dizer que um fóssil de dinossauro é a mesma coisa que um dinossauro vivo.
(Provavelmente não é o género gramatical que reflecte a representação do sexo biológico, mas a representação do sexo biológico que reflecte o género gramatical. Veja-se o que acontece com certas representações antropomórficas de conceitos abstractos, como a Morte. Em português, espanhol e francês é do género feminino, e nas histórias em que entra como personagem comporta-se como uma mulher. Em alemão é do género masculino e comporta-se como um homem; como se comporta em inglês, onde é actualmente do género neutro mas já foi do masculino. Para um português, o Sol, masculino, persegue a Lua, feminina, no firmamento. Mas para um alemão "der Mond", masculino, persegue "die Sonne", feminina. Não se atribuiu o género em função do mito: criou-se o mito a partir do género.)
Nada do que se escreve neste artigo seria grave - apenas uma inocente ignorância e ingénuo simplismo em matérias de linguística, antropologia e história, somada a uma adesão acrítica a modismos conjunturais - se não viesse no contexto de uma visão identitária dos direitos humanos. E isto, sim, é grave. Pode mesmo ser monstruoso.
Para a autora, é ilegítima qualquer opinião que minimize ou desvalorize "o direito à representação linguística da identidade e o direito a uma igualdade entre mulheres e homens real e efetiva (sic)". O direito à representação linguística da identidade pressupõe um direito à identidade - no caso, à identidade fundada no sexo. E pelos vistos a representação linguística da identidade sexual é condição necessária para tornar real e efectiva a igualdade entre homens e mulheres.
Nenhuma política identitária torna efectiva, e muito menos real, a igualdade de seja quem for com seja quem for. As políticas identitárias, todas elas, o que criam é tribos: dentro da tribo todos têm direitos (e mesmo assim variáveis conforme a hierarquia); fora da tribo ninguém tem direitos nenhuns. É bem possível imaginar uma sociedade tribal que usasse o masculino genérico; mas fora desse masculino - porque fora do próprio conceito de pessoa humana - ficavam todos aqueles, de um sexo ou de outro, que não pertencessem à tribo.
Em bom rigor, todas as políticas identitárias são fascistas. Isto tanto nos casos em que o factor identificador é o sexo, como naqueles em que é a "raça", a etnia, a religião, o clube de futebol ou a nacionalidade. A fonte dos nossos direitos é a nossa humanidade comum e só a nossa humanidade comum. Não podemos, se quisermos ser entidades morais e políticas, ter outra tribo que não seja a humanidade. Se esta comunidade da condição humana se exprime, na economia de uma dada língua, pelo masculino genérico ("os homens", em português); ou pelo feminino genérico ("a criança", também em português); ou pelo neutro genérico ("das Kind", em alemão), o que interessa é que se exprime. Deitar fora esta maravilhosa capacidade que têm as línguas humanas de exprimir o máximo de sentido com a máxima elegância e o mínimo de recursos é deitar fora o bebé (masculino em português, neutro em alemão) com a água do banho.
Aplaudo de pé os dois
Aplaudo de pé os dois comentários de José Luiz Ferreira. Já me sinto menos sozinha nesta discussão, sou linguista, claro!
Totalmente de acordo, José
Totalmente de acordo, José Luiz Ferreira.
Pensar que uma alteração vocabular pode fazer com que as mulheres sejam mais respeitadas, menos vítimas de abuso ou violência só demonstra uma completa falta de noção, um desfasamento em relação à realidade que, honestamente, me choca. O que é preciso combater é o que está errado na sociedade. Não é a língua que determina comportamentos ou princípios. É a sociedade. É a educação - ou a falta dela.
Há, porém, limites à
Há, porém, limites à linguagem inclusiva que importa respeitar sob pena do ridiculo e, consequentemente, da perda de valor da intenção inicial.
A complexificação do discurso é um primeiro aspeto a considerar. Passar a dizer por mais palavras o que se pode dizer com menos por respeito a um principio de inclusão, sem valor acrescentado do ponto de vista do conteúdo da mensagem que se pretende fazer passar, torna o discurso balofo e desinteressante.
Por outro lado, cai-se por vezes em extremos dificeis de entender: assisti pessoalmente à defesa da reescrita dos contos tradicionais portugueses de modo a criar um discurso inclusivo.
Sim, a inclusão é uma batalha ainda longa de travar, mas também se corre o risco de, parafraseando, deitar fora o bebé ou a bebé com a água do banho.
Expressão orwelliana
Expressão orwelliana
O termo "linguagem inclusiva" é um bom exemplo de manipulação semântica ao estilo de "Nineteen Eighty-Four". A linguagem dita inclusiva não inclui, exclui. Quando usamos o masculino genérico para designar os professores e as professoras, estamos a representar um só grupo. Mas se nos sentimos na obrigação de especificar o que a economia e a lógica da língua não obrigam a que se especifique, e dizemos por sistema "os professores e as professoras" estamos a justapor dois grupos que presumimos reciprocamente exclusivos. É como se acreditássemos que por dizermos "os professores" (género masculino) quem nos ouvisse ia entender "os professores" (sexo masculino). Então especificamos "as professoras", conferindo-lhes assim precisamente o estatuto de "outro" que supostamente queremos evitar.
Isto é profundamente estúpido e estupidamente literal. Mas o que se subentende não é a estupidez do emissor, mas sim, injustificadamente, a estupidez do receptor. Dividimos o mundo em "nós", que somos inteligentes e explicamos tudo muito bem explicadinho, e "eles", que não entendem nada e precisam dessa explicação. Primeira ofensa.
A segunda ofensa é à linguagem, que é a faculdade humana de comunicar por meio da língua. A linguagem é intrinseca e inevitavelmente ambígua, mas sujeitá-la a tratos de polé para sobre-compensar esta ambiguidade não leva a nada e produz formulações desajeitadas, deselegantes, prolixas, obtusas, que ferem de forma tão violenta a sensibilidade auditiva de alguns ouvintes, entre os quais me incluo, que podem deixá-los incapazes ou sem vontade de atender à substância do discurso.
Mas a ofensa principal da "linguagem inclusiva" (que é na realidade exclusiva) é à liberdade humana, porque exige obediência a regras desnecessárias, e por conseguinte arbitrárias.
Concordo.
Concordo.
A procura da igualdade (ou equivalência) de género é perfeitamente legítima, mas este excesso de zelo é contra producente.
Quando leio textos de pessoas que repetidamente escrevem "professores e professoras" quando se referem à classe, ou pior, "professorxs" (argh!), tenho muito mais dificuldade em absorver a mensagem.
Agora querem mudar o nome do cartão de "cidadão" para cartão de "cidadania"...
José Luiz Ferreira, parabéns
José Luiz Ferreira, parabéns pela paciência e rigor com que tenta desmontar os pseudo-argumentos do fanatismo ideológico. Temo é que saber e rigor não bastem para travar o resultado de tal fanatismo: a novilíngua é já um instrumento de educação para a dita "cidadania"...
Gostava de saber o que é a
Gostava de saber o que é a "Ana Cansado, Licenciada em Relações Internacionais. Ativista social." diria se eu viesse, seja em que fórum fosse, dizer coisas com ar pretensamente científico e verdadeiro sobre relações internacionais, eu que sou licenciado em História da Arte. Falar com essa pretensa propriedade de coisas que não se domina dá nisto: "O artigo contém demasiados erros científicos, e demasiadas afirmações tão taxativas quanto infundadas, para estar a esmiuçar tudo ponto por ponto."
Como mulher, como mãe, como
Como mulher, como mãe, como cidadã, fico abismada por o BE perder tempo em discutir na AR pretensas discriminações linguísticas.
Não vê nada do que se passa no seu país? de errado e de verdadeiramente urgente ?
BI, estava muito bem. Agora,
BI, estava muito bem. Agora, como cidadã, agrada-me muito mais possuir um cartão de cidadania que um cartão de cidadão.
Esta nova vaga de feminismo é
Esta nova vaga de feminismo é um embaraço para as mulheres que lutaram à muitas décadas atrás.
Metem na cabeça que ainda vivem numa sociedade sexista e pronto. Provavelmente alguma má experiência as levou a isto e agora querem regredir o trabalho que se fez todos estes anos.
Já temos os mesmos direitos para homens e mulheres. Há igualdade de oportunidade.
É perfeitamente natural que em algumas profissões, em algumas empresas, etc, existam mais homens que mulheres, e em outras áreas o inverso.
Daqui a pouco vão dizer que faz sentido ter a assembleia composta por 50-50 (homens mulheres)... mas isto cabe na cabeça de alguém? As pessoas estão lá por mérito, ou porque há uma maior % de homens metidos na política, ou simplesmente pelas cunhas.
Esse "modelo patriarcal" existe só na cabeça de extremistas de esquerda que perderam a completa noção da realidade, e se lhes jogarmos dados estatísticos (aka factos), rejeitam-os como se nada fosse.
E se um homem mandar-me um piropo na rua... ai meu deus, que horror... que machista.
Se for uma mulher a mandar piropos, como já ouvi várias, algumas até abusivas, já é engraçado.
Sempre fui uma apoiante do bloco, mas se querem seguir nesta direção, adeusinho. Vou procurar por um partido que se preocupe com todos os portugueses, e não com uma pequena minoria de pessoas iludidas.
Maravilhoso texto, parabéns,
Maravilhoso texto, parabéns, necessário!
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