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Angola: “O barril do petróleo é o único partido da oposição capaz de derrubar o MPLA”

O livro “Magnificent and Beggar Land: Angola Since the Civil War”, de Ricardo Soares de Oliveira, está repleto de informação, apresenta até opiniões sinceras das esferas mais altas do partido no poder. Por Lara Pawson.
 Imagem do VI Congresso do MPLA. Foto Ampe Rogério/RA
Imagem do VI Congresso do MPLA. Foto Ampe Rogério/RA

Ao ler este livro, comecei a perguntar-me se o autor não era, na verdade, uma encarnação real do Griffin de HG Wells. Se não é o Homem Invisível, como é que Ricardo Soares de Oliveira seduziu as suas fontes para que falassem com tanta candura? Porque não estamos a falar de declarações anónimas recolhidas ao acaso nas ruas da capital de Angola, Luanda, ou das perspetivas de um taxista anotadas a partir de uma conversa durante um dos famosos engarrafamentos da cidade. Não, o que torna tão admirável “Magnificent and Beggar Land: Angola Since the Civil War” (Terra magnífica e pedinte: Angola desde a guerra civil) é que está repleto de informação, pequenas histórias, críticas e até arrependimentos das esferas mais altas do partido conhecido pelo secretismo que governa Angola há 40 anos, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA).

Numa deslocação a um parque industrial completamente novo, a Zona Económica Especial (ZEE), nos arredores da capital, uma figura de topo do MPLA, sob o charme de Soares de Oliveira, revela como os envolvidos ganharam dinheiro ainda antes da zona começar a produzir seja o que for. “Muitas das fábricas foram compradas em segunda mão, já obsoletas”, diz a fonte. Foram “extremamente caras” e estão “ligadas a contratos de gestão igualmente caros porque nós não podemos geri-las”.

Outra alta figura admite que a empresa de defesa israelita LR Group, que desempenhou um papel crucial na derrota do exército rebelde da União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) nos últimos anos da guerra civil, praticamente “gere o exército”.

Outra alta figura admite que a empresa de defesa israelita LR Group, que desempenhou um papel crucial na derrota do exército rebelde da União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA) nos últimos anos da guerra civil, praticamente “gere o exército”. Noutra conversa, esta sobre as possibilidades de um futuro risonho para a maioria pobre, um antigo ministro diz abruptamente ao autor: “a maioria das pessoas [na cúpula do partido] não acha isso urgente; Angola tem tanto dinheiro, que eles pensam que podem cometer erros e começar de novo [e mesmo assim] sair por cima”.

Para os que não estão familiarizados com Angola, estes exemplos podem não parecer dignos de nota. Mas qualquer pessoa que tenha tentado recolher informação no país ou aceder aos escalões mais altos do MPLA fica impressionado. Um experiente correspondente internacional admitiu-me um dia que Angola era um dos lugares dos quais tinham desistido de dar notícias: “Ninguém fala. É impossível.” Mais recentemente, como refere Soares de Oliveira, tornou-se mais fácil fazer pesquisas. Não obstante, aceder a alguém com algum poder ainda requer alguma habilidade. Persuadi-los a dizer o que realmente pensam – não apenas debitar a linha do partido – requer quase um milagre. Soares de Oliveira alcança isso mais do que uma vez. Este livro é testemunho de um compromisso em construir relações e vontade de ouvir. Devemos saudá-lo por isso.

Também temos de reconhecer o tão bem que escreve. Se não fosse pelo nome, nunca adivinharíamos que o inglês é a sua segunda ou terceira língua (também é fluente em francês). A sua eficiência com as palavras permite-lhe espremer montanhas de pormenores em pouco mais de 200 páginas. É, por isso, com alguma vergonha, que esta recensão consegue apenas dar um vislumbre desta magnífica investigação.

Queria perceber até que ponto a reinvenção realmente aconteceu”

Reduzido ao essencial, “Magnificent and Beggar Land” investiga a transformação extraordinária da política económica angolana depois da guerra ter finalmente acabado ao fim de 41 anos. “Desde 2002, por uma variedade de razões, o país reinventou-se”, afirmou Soares de Oliveira numa entrevista recente ao jornal português Observador. “Queria perceber até que ponto isso [a reinvenção] realmente aconteceu ou se havia continuidades em relação às estruturas de desigualdade e subdesenvolvimento que existiam, não só no contexto da guerra civil, também no período colonial.”

“Magnificent and Beggar Land” investiga a transformação extraordinária da política económica angolana depois da guerra ter finalmente acabado ao fim de 41 anos.

Vista de uma determinada perspetiva, escreve o autor, “a última década parece pouco mais do que uma nova configuração do papel perene de produtor de matérias-primas na periferia da economia mundial”. Embora Angola tenha sido apelidada como a economia de mais rápido crescimento no mundo nos primeiros anos do milénio, Soares de Oliveira vaticina que o mais “provável” é que essas taxas de crescimento “tenham desaparecido para sempre”. Mais a mais, o petróleo continua a representar cerca de 95 por cento do total de exportações do país com poucos indícios de uma verdadeira diversificação estar realmente a acontecer. Mais pessimista ainda, “o barril do petróleo é o único partido da oposição capaz de derrubar o MPLA”. Assim diz o amigo do autor, Manuel Ennes Ferreira, economista que trabalha em Portugal mas cresceu em Angola. Estes factos e sentimentos são familiares para observadores experientes de Angola. Porém, o diabo – e tomem-no tão literalmente como quiserem – está realmente nos detalhes.

Se me dissessem que Soares de Oliveira entrevistou todas as pessoas que fizeram negócios em Angola nos últimos 25 anos, eu acreditaria. Para ilustrar os seus argumentos, cita, entre uma miríade de outros, o dono de uma fábrica de detergentes e arranja as estatísticas de um antigo fazedor de gelados que se meteu nos diamantes. Descobre citações de todo o género de estrangeiros bajuladores – sejam eles diplomatas, chamados consultores ou tipos intransigentes das finanças. Faz referência aos documentos do Departamento de Estado dos EUA na Wikipédia para nos lembrar das alegações de que o Hezbollah usou empresas angolanas como fachada para financiar as suas operações. Os exemplos que usa para ilustrar a velocidade da transformação do país fazem esta leitora rir algumas vezes.

No capítulo “Oligarchic Capitalism, Angola-Style” (Capitalismo oligarca ao estilo angolano), Soares de Oliveira convida-nos a imaginar um tempo em que as pessoas ainda assumiam que os negócios e a política eram autónomos, pelo menos de nome. “Perante os últimos desenvolvimentos, é difícil transmitir”, escreve, de maneira seca, “o frisson causado na sociedade de Luanda, no princípio dos anos 1990, notícia que a mulher do presidente, Ana Paula dos Santos, era dona de uma sapataria e de um cabeleireiro.” Isto evoca a ideia de um lugar quase adorável. Já não existe.

O sistema de financiamento paralelo da Sonangol

Partindo do paper inovador que escreveu sobre a empresa petrolífera nacional Sonangol, publicado em 2007, Soares de Oliveira embrenha-nos ainda mais naquela que era (até ao mais recente crash petrolífero) a segunda maior empresa africana e que, desde a independência, tem sido o coração que bombeia o coração do MPLA. Explica meticulosamente como opera o sistema de financiamento paralelo e como o Presidente José Eduardo dos Santos aumentou o seu poder e reputação, não só em termos domésticos, como em todo o mundo. Mostra-nos como os saltos impressionantes que o país deu – em termos do seu posicionamento internacional, dos seus números macro-económicos e da remodelação arquitetural de Luanda – são, na sua essência, produto da visão do MPLA.

“Este livro”, afirma, referindo-se à derrota da UNITA em 2002, “é sobre aquilo que os vencedores fizeram com o seu poder: a Angola que imaginaram e a que tentaram dar vida.” É, e sempre foi, argumenta, uma visão muito “modernista”. Neste aspeto, encontramos aqui uma falha naquilo que, em todos os outros aspetos, é um grande livro.

Apesar de várias referências a “moderno” e “modernista”, Soares de Oliveira não define adequadamente o que quer dizer – nem o MPLA, diga-se – com esses termos totalizadores. Aquilo que depreendo a partir do livro é que são duplicados do “europeísmo” com uns toques de Emirados. Numa nota de pé de página, é citada a definição de “alto modernismo” que James Scott escreveu em 1998; por outras palavras, a utilização da ciência e da tecnologia para reordenar o mundo social e natural.

É claro que a modernidade euro-americana produziu um “reordenamento” muito específico do mundo através da violência brutal, incluindo o comércio transatlântico de escravos, o colonialismo e a limpeza étnica, tanto interna como externamente. De uma forma sangrenta e traumática é esta a história que liga Angola às tradições perturbantes da Europa e ao seu dito iluminismo. Soares de Oliveira não ignora isto: o seu primeiro capítulo providencia um sumário útil dessa história e de como esta se relaciona com a história específica do MPLA. Esta leitora, no entanto, gostaria que tivesse considerado os debates teóricos que têm surgido em torno do conceito de modernidade e da ideia de modernização, porventura, da particular perspetiva de alguns intelectuais negros. Isto poderia abrir outra discussão crucial em torno do papel do público angolano em geral, os milhões que ainda vivem numa horrível pobreza e cujo trabalho, vida e amores são, indiscutivelmente, aquilo que torna o país tão magnífico.

Desde que acabei de ler este livro, uma ideia permanece arreigada no meu pensamento. Surgiu a determinada altura no capítulo “The Spectacle of Reconstruction” (O espetáculo da reconstrução), quando a nossa atenção está focada na versão luandense de Copacabana. Citando uma revista que descreve o projeto para a frente oceânica, é-nos dito: “O futuro está a acontecer à vista de todos.” Esta observação poética é inquietante. Ao olhar para Angola, muitas vezes sentimo-nos a olhar para o mundo através de um microscópio. Esta terra magnífica e pedinte tem tudo o que nós temos – do consumismo desbragado à sede cega pelo petróleo, passando pelo desprezo pelos pobres, por uma hierarquia racializada estabelecida há muito tempo e por um crescente sentimento de frustração entre os jovens. O que quero dizer é que, por mais excessivo que Angola seja, quanto mais nos aproximamos e de mais perto olhamos o país, mais nítido se torna o nosso reflexo e aquilo que o futuro nos reserva a todos.

Lara Pawson é uma jornalista freelancer que vive no leste de Londres. É autora do livro “Em Nome do Povo: O Massacre que Angola Silenciou”, editado o ano passado em português pela editora Tinta da China.

Este texto foi originalmente publicado em inglês no site African Arguments da Royal African Society de Londres. Tradução de António Rodrigues para o Rede Angola. O texto original pode ser lido aqui.

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