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O que fará a esquerda perante o maior desafio da História da Humanidade?

Onde estamos hoje? Porque recuamos? Resignamos? Porque deixamos o maior desafio com o qual a Humanidade já se deparou, as alterações climáticas, entregues a uma agenda marginal, paralela, um pin de lapela para esverdear casacos e tranquilizar as nossas próprias mentes? Por João Camargo.
Foto H M Cotterill/Flickr.

A contradição entre Capital e Trabalho, "a" contradição principal do capitalismo, já não o é. Hoje, o colapso de frente entre Capital e Clima tornou-se não apenas a contradição principal do capitalismo, senão mesmo a contradição principal da História da Humanidade. A prevalência do pensamento económico, cultural e moral judaico-cristão do Ocidente sobre o planeta coloca hoje em causa a sobrevivência da civilização. Não é um exagero nem uma figura de retórica: as alterações climáticas têm amplamente a capacidade de acabar com as estruturas básicas que compõe a civilização: a cultura, a estrutura política, a educação, a nutrição, a iminente incapacidade de sobrevivência por parte da maioria da população do planeta. Mais grave que terem essa capacidade é que estão efetivamente a avançar nesse sentido. O que pode soçobrar num tal cenário apocalíptico?

Comecemos pela Ciência, esquivando-nos a debates infantis acerca de teorias de conspiração sobre as descobertas do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas. Há um consenso histórico acerca da origem humana das alterações climáticas e sobre os impactos catastróficos das mesmas. Histórico porque é o maior e mais amplo consenso científico da História da Humanidade, comparável apenas à Teoria da Evolução das Espécies, de Darwin. É um bom paralelo, aliás. Ainda há hoje numerosas seitas, religiosas ou políticas, convictas ou oportunistas, que afirmam a todos os momentos que não existe evolução e mesmo após séculos, continuam a sua profissão de fé. Nada além de demagogia da mais barata foi produzida até hoje para contrariar as evidências das alterações no clima. Os investimentos nestas campanhas de contra-informação, principalmente por parte da indústria dos combustíveis fósseis, não puderam mais do que continuar a atrasar a ação necessária. Hoje já nem negam as evidências, apenas dizendo que já não há nada a fazer. No entanto, para ser perfeitamente claro, os dez anos mais quentes desde que há registo foram: 2014, 2010, 2005, 1998, 2013, 2003, 2002, 2006, 2009, 2007. O inverno 2014-2015 é o mais quente desde que há registos. Dizer que não há aquecimento global porque está frio num sítio é o mesmo que dizer, após comer uma refeição que, como estamos satisfeitos, não há fome no mundo. A desregulação do clima poderá no entanto reservar-nos ainda surpresas.

A região do Mediterrâneo (incluindo o Mar e as costas europeia, africana e do Médio Oriente) está hoje 2ºC mais quente do que na década de 50. Chove menos e há portanto mais secas, mas chove mais em períodos mais curtos e concentrados (pelo que também há mais cheias). Hoje, os solos das planícies agrícolas, os matos e as florestas (muito artificializadas) estão expostos a um acelerado processo de degradação, de erosão e perda de estabilidade, o que significa que a região se está a tornar um deserto. Isto não são previsões, mas sim observações das últimas décadas. No caso de Portugal, em concreto, acresce uma costa fustigada por um Oceano Atlântico que vai subir inequivocamente nos próximos anos, e rios sobrecarregados com uma densidade de barragens que inviabilizou a sua utilização local e contribuiu para a erosão costeira ao reter os sedimentos que enriqueceriam os estuários e as costas. Algumas das cidades costeiras do Norte do país, como Esposende, Ovar e até Aveiro terão de ser deslocadas para o interior, porque vão ser permanentemente invadidas pelo mar. Pontões e recargas de areia de nada servirão. São apenas mais areia para os olhos para não responder ao problema. Saltando para o mundo, há várias nações-ilhas do Pacífico em que, ao contrário das cidades do litoral português, não haverá para onde recuar, e desaparecerão: Maldivas, Kiribati, Fiji, entre outras.

O 5º relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) é um documento sintetizado por mais de 300 cientistas de 70 nacionalidades, coligindo contributos de mais de 1800 outros e revisto por mais de 10 mil, que só pode ser aprovado depois de passar pelo crivo de dezenas de governos nacionais. Este processo de mediação política (principalmente por governos de direita) dá-nos uma garantia inequívoca: as coisas estão piores do que o que vem no texto final. É importante no entanto ler algumas das coisas referidas:

- Nas décadas recentes, as mudanças no clima provocaram impactos nos sistemas naturais e nos sistemas humanos em todos os continentes e por todos os oceanos”;

- As concentrações atmosféricas de dióxido de carbono, metano e óxido nitroso são sem precedentes pelo menos nos últimos 800.000 anos. Os seus efeitos, junto com outros agentes antropogénicos, foram detectados em todo o sistema climático e é extremamente provável que tenham sido a causa predominante do aquecimento observado desde metade do séc. XX.”

- o aquecimento do oceano contabiliza mais de 90% da energia acumulada entre 1971 e 2010, com os 75 m superiores tendo aquecido 0,11ºC por década entre 1971 e 2010” – isto explica portanto como os oceanos têm servido de tampão até ao momento de eventos catastróficos de escala global;

- A extensão do gelo no Ártico decresceu entre 1979 e 2012, com uma taxa muito provável entre 3,5% e 4,2% por década”;

- Para as zonas urbanas “as alterações climáticas aumentarão os riscos para pessoas, bens, economias e ecossistemas, incluindo riscos de stress de calor, tempestades e precipitação extrema, cheias interiores e costeiras, deslizamentos de terra, poluição do ar, secas, escassez de água, aumento do nível do mar e ondas gigantes (muito alta confiança). Estes riscos são amplificados para quem não tem acesso a infraestruturas e serviços essenciais ou que viva em áreas expostas”

- Para as zonas rurais “é expectável o acontecimento de grandes impactos na disponibilidade e fornecimento de água, na segurança alimentar, nas infraestruturas e rendimentos agrícolas, incluindo mudanças nas áreas produtivas de colheitas alimentares e não alimentares por todo o mundo (alta confiança).

- É muito provável que a influência humana tenha contribuído para as mudanças de escala global na frequência e intensidade de temperaturas extremas diárias desde a metade do séc. XX.

- “A contínua emissão de gases com efeito de estufa causará mais aquecimento e alterações de longa duração em todos os componentes do sistema climático, aumentando a probabilidade de impactos severos, difusos e irreversíveis para as pessoas e para os ecossistemas. Limitar as alterações climáticas requer reduções substanciais e sustentadas das emissões de gases com efeito de estufa que, em conjunto com a adaptação, podem limitar os riscos das alterações climáticas.”

Expressões como “extremamente provável”, “muito provável”, “muito alta confiança” e outras similares resultam do processo de mediação Ciência – Política, e querem dizer que o nível de concordância científica é inequívoco, que não há sequer espaço político para tentar negar estas evidências.

Estas previsões são apenas as destinadas a um cenário sem alterações repentinas. Os eventos singulares de grande escala – o derretimento de grandes fatias do Pólo Norte, a paragem de circulações marinhas ou atmosféricas – que podem alterar o clima global num curtíssimo espaço de tempo, são cenários apocalípticos, de probabilidade plausível. Esta probabilidade aumenta se continuarem a aumentar as emissões de gases com efeito de estufa (como tem ocorrido desde 2009). Para contrariar estes eventos, uma vez ocorridos, há pouco a fazer.

A pergunta é então: do que estamos à espera? Este é o tema mais importante das próximas décadas, dos próximos séculos. O modelo capitalista e todos os seus pressupostos põe em causa a viabilidade da civilização. E já se apercebeu disto. No entanto, presos na importância do debate e da luta política do dia-a-dia, circunscrita a nível nacional ou, na melhor das hipóteses, europeia, fazemos (a esquerda) desta questão um detalhe, o 10º ponto de um programa, a página verde de um plano que, podendo até ser de ruptura, não rompe de forma alguma o modelo de produção, o modelo energético, o modelo de transportes, o modelo de comércio, o modelo de consumo, de agricultura, de ordenamento do território, de redistribuição de renda.

Sejamos claros: falar de ecossocialismo é muito importante, mas até hoje não se materializou em propostas concretas que façam avançar a luta social, a consciência coletiva, o campo do possível. A crise climática está ligada à crise financeira: apesar dos elevados níveis de especulação monetária, bancária e financeira, no final, as alterações ao nível das matérias-primas, da produção não podem ser contrariadas permanentemente pela especulação. Por isso é que o crescimento eterno da especulação choca com o crescimento decrescente que muitas vezes recua e que tenderá rapidamente a ser negativo com o agudizar das alterações climáticas. As diferenças de preços do trabalho e das matérias-primas são o motor da degradação ambiental e o comércio internacional o maior agente de promoção de alterações climáticas. A produção desloca-se para onde for mais barato destruir o ambiente. Não é de estranhar, portanto, que seja no pico da globalização que a crise das alterações climáticas se agudize. A deslocalização da produção para a China é que fez disparar as suas emissões – e a China continua a exportar os produtos para a Europa e para os Estados Unidos, pelo que de facto as emissões continuam a aumentar porque o consumo não se altera. E é por isso que é necessário precarizar a mão-de-obra e privatizar os recursos naturais na Europa da austeridade – para poder aumentar a produção insustentável a nível local, continuar a alimentar as bolhas da especulação financeira, para que estas não rebentem e para que se possa continuar a enriquecer os barões ladrões do Ocidente. É para isto que estão a destruir o futuro.

O desafio que temos pela frente é colossal. Implica mudar a sociedade de forma radical. Isto é assumido por muitos dos cientistas, que não podem em consciência negar a certeza do que está a acontecer. A noção judaico-cristã que tanto verteu no liberalismo, no neoliberalismo e até no marxismo, de que cabe à Humanidade como herança subjugar a Terra é fundamentalmente errada. A oposição entre humanos e natureza, sob a qual assenta o capitalismo, faz de nós, coletivamente, um parasita. A febre que o planeta está a desenvolver poderá terminar com a nossa História.

As respostas do capitalismo ao que se está a passar são como as suas desculpas: esfarrapadas. Não há nenhuma tecnologia milagrosa ao virar da esquina para tirar dióxido de carbono da atmosfera e voltar a convertê-lo em combustível fóssil e armazená-lo no solo. O comércio de emissões de carbono e as taxas aplicadas sobre as emissões não funcionam. A aplicação dos mesmos princípios de extração de mais-valia, de custo de oportunidade e de ignorar os impactos ambientais e climáticos, que são a base do capitalismo, não poderão produzir nenhuma solução viável. É por isso que os think tanks atacam a Ciência das Alterações Climáticas. É por isso que o capitalismo verde é uma falácia nos seus próprios termos. Porque a adaptação e mitigação eficientes implicam necessariamente uma ruptura radical com o capitalismo. Vários órgãos mainstream já o afirmam. O jornal Guardian lançou inclusivamente uma campanha pelo desinvestimento em combustíveis fósseis, que recolheu em poucos dias mais de 100 mil apoiantes. Esta questão será hegemónica em menos de uma década.

E é aqui que estamos. A contradição fundamental do capitalismo não deixa espaço a reformismos e meias-medidas. O mundo já está fundamentalmente diferente daquele em que o capitalismo se desenvolveu e prosperou. E agora só degradando cada vez mais e muitas vezes de forma irreversível o trabalho, o ambiente e o clima poderá continuar a manter as suas taxas de retorno, os seus lucros, a sua extração mais-valia. A austeridade é isso mesmo. É por isso que apesar de todos os acordos internacionais como Kyoto, as emissões estão a subir e não a descer: em 2010 subiram 5,9%, o maior crescimento de emissões desde a Revolução Industrial. E mesmo que as emissões caíssem para zero amanhã, as alterações que já estão a acontecer não parariam: porque os gases com efeito de estufa ficam na atmosfera décadas ou mesmo séculos.

O programa da esquerda tem que ser o programa do novo futuro, porque não há mais viabilidade para o business as usual nem qualquer tranquila compatibilização com um simpático capitalismo humanitário ou social-democrata. O futuro vai ser diferente, com menos colheitas, com mais secas e cheias, com perda de territórios para o mar, com mais incêndios, com mais pobreza. Caso fiquemos à espera desse tempo sem ter uma proposta para ele, a probabilidade de um fascismo verde, de um darwinismo social como ainda não vimos até hoje, estará em cima da mesa. As camadas mais pobres da sociedade serão abandonadas à fome e à miséria, sacrificadas à morte. Um destino plausível para a maior parte dos habitantes do planeta. A proposta tem de ser simples: uma nova economia, milhões de novos trabalhos, o fim de várias actividades económicas inúteis e poluidoras, substituídas por trabalhos socialmente úteis, o fim da obsolescência programada, a construção de novas redes de energia descentralizadas e sem utilização de combustíveis fósseis, agricultura local, com colheitas, culturas e práticas adaptadas aos solos e água que temos, com transportes públicos para todo o território e de qualidade, investigação aplicada e de ponta para recuperação e preservação de ecossistemas, para a conservação de solos e água e um sistema de comércio nacional e internacional totalmente diferente do atual, fora dos âmbitos dos tratados internacionais de comércio e da Organização Mundial de Comércio, a desaceleração dos ritmos de trabalho e de vida, a democracia económica e social, a economia planificada pelos e para os povos, e para o planeta. Este é o nosso programa de sempre, um programa de liberdade, de conhecimento, de comunidade, de continuidade, de deixar para as futuras gerações não um futuro melhor (esse comboio já perdemos), mas sim uma política social, uma hegemonia cultural de partilha e de defesa das populações. É o nosso objetivo e tem por isso que ser o nosso programa. Já perdemos tempo demais.

Sobre o/a autor(a)

Investigador em Alterações Climáticas. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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