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Portugal, a traição do falso bom aluno

A exibição de Portugal como um animal de circo pela chanceler alemã, Angela Merkel, e pelo seu ministro das Finanças, Wolfgang Schaüble, com o objetivo de demonstrar a pertinência das políticas de austeridade da Troika face à Grécia, revela má fé. Publicado em francês em Mediapart.

Para apoiar esta afirmação podemos começar por assinalar, antes de mais, e aludindo ao primeiro eixo do Memorando (restaurar o equilíbrio das finanças públicas), o não alcance dos objetivos em matéria de défice orçamental e a progressão vertiginosa da dívida cujo peso passou de 100% do PIB aquando da chegada da Troika para 128,7% em finais de 2014, ou seja seis meses após a sua saída oficial do país.

Podemos também constatar, se nos referirmos ao segundo eixo do Memorando, a ausência de estabilidade do sistema financeiro de que o colapso recente (2014) do terceiro grupo financeiro português e segundo grupo privado do país – grupo Espírito Santo (GES) – constitui a prova irrefutável, embora não exclusiva.

Enfim, se a importância das reformas estruturais iniciadas com vista ao aumento da competitividade da economia (terceiro eixo do Memorando) oferecesse a linha de demarcação entre o bom e o mau aluno, a Grécia, campeã destas reformas segundo a OCDE, seria o melhor aluno da turma.

se Portugal não é a Grécia, como se comprazem a repetir incansavelmente os seus governantes, tal situação deve-se mais à atitude colaboracionista do governo português em relação à Alemanha do que aos indicadores económicos do país ou à respetiva trajectória

De facto, se Portugal não é a Grécia, como se comprazem a repetir incansavelmente os seus governantes - prova que as diferenças entre os dois países não são assim tão evidentes – tal situação deve-se mais à atitude colaboracionista do governo português em relação à Alemanha do que aos indicadores económicos do país ou à respetiva trajectória que, no final de contas, não são assim tão diferentes quanto isso1.

A Comissão europeia não perdeu tempo a assinalá-lo, já que, menos de uma semana decorrida após a exibição pela Alemanha do bom aluno da Troika2, retomou as severas críticas que tinha vindo a formular, desde o início do ano, em relação a Portugal, colocando-o sob vigilância apertada devido a desequilíbrios macro-económicos excessivos (primeira etapa antes da aplicação de sanções).

Pela voz do seu comissário para os Assuntos Económicos e Financeiros, Pierre Moscovici, a Comissão reprova a Portugal o nível demasiado elevado do endividamento do país tanto no plano interno como no plano externo, bem como a situação do mercado laboral e intima-o a realizar mais reformas estruturais e a aprofundar a consolidação das finanças públicas.

Com o objetivo declarado de fazer crescer a economia, estas recomendações e o objetivo prosseguido através da sua implementação, indiciam a novilíngua que se tornou a língua oficial das instituições europeias, conquanto sabemos onde nos conduziram as medidas de consolidação orçamental e as reformas estruturais que supostamente contribuiriam para o aumento da competitividade da economia portuguesa.

Não obstante não ter (ainda) atingido o da Grécia, o balanço já é pesado em Portugal : quebra de 30 % do investimento, destruição de 400.000 postos de trabalho, taxa de desemprego de mais de 20% em termos reais, atingindo particularmente os jovens, saldos natural e migratório negativos com a emigração a atingir de novo a dimensão de um fenómeno de massa que priva o país de cerca de 120.000 pessoas ao ano, privação essa que se vem juntar à dos bens públicos, já vendidos (como a energia ou os correios) ou a vender, como a companhia aérea nacional (TAP), ao desbarato.

Portugal voltou a ser o país onde as filas para as sopas dos pobres se instalam ostensivamente na paisagem, a caridade toma o lugar do Estado social e a linha de separação é cada vez mais a que divide a arrogância dos privilegiados - empanturrados por via de uma repartição cada vez mais desigual do produto - da grande massa de gente humilde

Desemprego e emigração em massa, desvalorização salarial e redução do Estado social, sistema de saúde à beira do colapso, puseram de joelhos este povo que emergiu há quarenta anos de meio século de ditadura e de pobreza: dos seus 10.5 milhões de habitantes, 2 milhões vivem abaixo do limiar da pobreza e outros dois milhões estão em risco de se encontrarem em talsituação. Com os seus milhares de emigrantes, de expulsos dos alojamentos penhorados pelos bancos, de adultos e de crianças atingidos pela fome, de trabalhadores precários e de excluídos, Portugal voltou a ser o país onde as filas para as sopas dos pobres se instalam ostensivamente na paisagem, a caridade toma o lugar do Estado social e a linha de separação é cada vez mais a que divide a arrogância dos privilegiados - empanturrados por via de uma repartição cada vez mais desigual do produto - da grande massa de gente humilde.

Artesão da implementação das políticas que conduziram a esta situação, o governo português poderia ter agarrado a ocasião histórica que lhe era proporcionada e apoiar as reivindicações libertadoras do novo governo grego: em vez disso, preferiu ser mais alemão do que o governo alemão. A retribuição não tardou, tendo Portugal depressa recebido o prémio do seu servilismo que é aquele com que se presenteiam tantas vezes os traidores: continuar a consolidação orçamental e as reformas estruturais, ou seja, as mesmas políticas que, sob pretexto de criar crescimento e restaurar equilíbrios, vão mergulhar o país um pouco mais na espiral da estagnação recessiva e do disparo duma dívida que já é insustentável.

Com nova dose de reformas e de medidas, Portugal, que já se parece tanto com a Grécia, vai aproximar-se ainda mais dela: mas de uma outra Grécia, não a de Tsípras e Varoufákis que procuram nomeadamente diminuir o saldo primário do orçamento grego3 para começar a restaurar o Estado Social, em vez de tudo ceder aos credores, mas à de Papandreou e Samaras cuja submissão aos ditames da Troika conduziu a Grécia à situação em que ela se encontra hoje.

A História encarregar-se-á de julgar o governo de Portugal por alta traição: ao povo grego, aos povos periféricos, aos milhões de pobres dos países do Norte e, acima de tudo, ao povo português.

Artigo publicado a 16 de março de 2015 em francês no Mediapart. Traduzido pela autora para português, para esquerda.net


1 Mesmo que nos refiramos à dívida, é importante notar que se a dívida pública grega é superior à portuguesa (177% do PIB contra 128.7% em 31 de Dezembro de 2014, a dívida global (que inclui para além da dívida pública, a dívida privada das famílias e das empresas não financeiras) é considerávelmente superior em Portugal (para cima de 380% do PIB, contra menos de 300% para a Grécia). Quanto à dívida externa portuguesa, ela é uma das mais importantes da UE e do mundo

2 - ou seja, em 25 de Fevereiro

3 O saldo primário é o diferencial entre as receitas e as despesas do Estado, antes do pagamento dos juros da dívida

Sobre o/a autor(a)

Doutorada em Ciências de Gestão pela Universidade de Paris I – Sorbonne; ensinou Economia portuguesa na Universidade de Paris IV -Sorbonne e Economia e Gestão na Universidade de Paris III – Sorbonne Nouvelle
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