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O travo
Primeiro foi o “saiam da vossa zona de conforto” – “bazem”, na fórmula certeira do José Soeiro há dias no parlamento – e o incitamento à emigração para ver se as coisas por cá podem respirar sem tanta gente a criar problemas. Porque quanto mais gente, mais problemas. Houve nisso um regresso evidente ao Portugal dos anos sessenta pela semelhança de abordagens políticas e sociais com que a emigração foi dita pelos governantes, estilo “aqui não dá, não vai dar, tentem lá fora, pode ser que dê”. Os programas diários com que a rádio e a televisão públicas fazem a apologia dos “casos de sucesso” de emigrantes – sobretudo jovens – criam depois a cultura social de aceitação do que devia ser, desde o princípio, inaceitável.
Sobre isto caiu depois a ode aos “cofres cheios”. A um país esbofeteado pela austeridade, a tanta gente cujas vidas perderem outro sentido que não seja a sobrevivência e a pilotagem à vista, a frase orgulhosa da governante só pode soar a ofensa gratuita. Tal como no Estado Novo, as contas de mercearia do tesouro do palácio têm como preço a desesperança das vidas do povoado. E o orgulho da governante é tanto mais indigno quanto promete que o acesso aos cofres cheios será seletivo: chegar-lhes-ão os que sempre ganham, enquanto aqueles a quem foi tirado o pouco que tinham para que os cofres do palácio se enchessem não terão a mínima recompensa.
Insisto: há nisto um óbvio travo de Estado Novo. O contexto é diferente? Depende do que considerarmos como contexto. Porque o nosso é de novo um tempo em que a democracia é cada vez mais referenciada publicamente por quem manda como um obstáculo ao cumprimento do que nos dizem que realmente conta: a satisfação dos mercados. O nosso é de novo um tempo em que a gente do palácio governa proclamando “que se lixem as eleições”.
O que precisamos de fazer é criar condições para que a imensa e profunda indignação causada por este travo de Estado Novo se exprima em força política com suporte democrático para lhe pôr fim. Essa é a nossa responsabilidade.
Comments
Caro José Manuel Pureza
Caro José Manuel Pureza
Como sempre, os seus comentários vão ao fundo das questões, tocam na ferida, e de forma clara ajudam-nos a mais rapidamente percebermos as coisas.
Esta sua ideia de travo a fascismo veio lembrar-me uma preocupação e desconfiança que tem vindo a agitar os meus poucos e já cansados neurónios. Preocupação essa que tenho vindo a partilhar com alguns amigos e familiares, e de vários quadrantes. Gostaria de a partilhar também consigo, e saber se possível, a sua opinião.
Eu tenho a suspeita que toda esta ofensiva de austeridade, de retrocesso social, de miséria, de regresso ao passado, não está só a ocorrer no plano político. Assim tipo: a maioria de direita aprova, o governo executa (a europa manda), o presidente promulga, e pronto, o povo aguenta e não bufa. Não. Eu acho que alguém na sombra tem um plano policial, um género de plano B para o caso da populaça se revoltar e os mande à dita que os pariu. E numa situação de crise aguda não será difícil recrutar jagunços (do tipo daquele ex-dirigente do Sporting-tinha que ser logo do meu clube), que por 500 paus não terão rebuço em adiantar uma informaçãozinha. Não uma Pide como antigamente, mas "democrática". Musculada, mas democrática. Eu sei que a coisa está controlada. As sondagens dão uma derrota confortável à direita, e garantem que o PS será alternância, nem que seja em coligação para garantir mais estabilidade (como eles gostam de estabilidade), e não teremos para mal dos nossos pecados um "fenómeno" tipo Podemos. Pode ser que sim, mas eu ando desconfiado. Estarei a exagerar? Estarei a sofrer do complexo da teoria da conspiração? Honestamente estou preocupado.
A forma como as policias de transito se apresentam em cada esquina com 5 e 6 patrulhas a importunar quem anda a trabalhar, multando a torto e a direito; o numero de policia "especial" que ocorre a qualquer manifestação com meia dúzia de pessoas, cheira-me a amedrontação. Lá está o travo a fascismo. O medo é também uma forma de governar. E os portugueses sabem o que isso é. Tenho falado com alguns amigos que têm um pequeno negócio, e que andam aterrorizados com as visitas da Autoridade Tributária, que andam a verificar os stocks das chafarricas. O medo tomou conta das pessoas.
Por favor comente estes meus receios, para ver se não sou eu que estou a ficar maluco, ou se é a idade que já me está a pregar partidas.
Um abraço
Paulo
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