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O Evangelho segundo Maria Luís

Maria Luís Albuquerque participou em Pombal numa iniciativa organizada pela JSD. Até aqui tudo normal. Como frequentemente acontece nestas ocasiões, com um público rendido à partida, a Ministra das Finanças esticou-se na linguagem.

É sempre bom quando os governantes estão à-vontadinha e se esticam na linguagem, porque é nesses exatos momentos, sem a pressão do filtro, que revelam o que pensam. E como pensam.

E o que disse então Maria Luís Albuquerque? Pelo menos três coisas. A primeira é que “não sentia nada” sobre Varoufakis, revelando mais uma vez a necessidade de exorcizar a presença do governo que, na Europa, mais tem feito pelos interesses objetivos dos portugueses e das portuguesas.

A segunda foi para informar que Portugal, independentemente da dívida, “tem os cofres cheios”. A imagem evoca uma espécie de mistura entre o Tio Patinhas, que nadava em moedas no seu cofre-forte, e o ditador Salazar, de quem se diz ter feito o país acumular riqueza quando havia fome, os jovens eram obrigados à emigração ou conduzidos à guerra e os povos africanos viviam sob a exploração colonial. É verdade que hoje o contexto é outro, mas sabemos que pelas bandas do governo há mesmo quem assim pense: os portugueses estão pior, mas o país está melhor.

Por fim, Maria Luís Albuquerque formulou um convite. “Vocês que são jovens, multipliquem-se!”. E acrescentou: "a verdade é que havendo condições razoáveis eles criam-se e compensa". Dizem os jornalistas que a plateia irrompeu em palmas, como quem agradece os conselhos de uma tia experiente. Pouco importam as condições objetivas, os incentivos reais, o contexto sociopolítico adverso que os jovens hoje enfrentam e que é um motivo importante para a quebra de natalidade. O que importa é a intenção.

Tudo isto seria ridículo se não fosse formulado na voz de uma ministra importante, apontada como putativa sucessora de Passos Coelho. No fundo, é a política do “voluntarismo alucinado”, o mesmo que deu origem ao recente programa Vem, baseado numa retórica que coloca a tónica na auto-responsabilização - ideológica na medida em que propõe o reverso daquilo que são os resultados das medidas concretas implementadas - e que foi exemplarmente criticada esta semana na Assembleia da República por José Soeiro.

De repente, tudo isto lembrou-me uma história. Conta-se que o período em que houve mais acidentes na China maoista foi no momento em que o regime decidiu modificar o sentido dos semáforos, porque o vermelho deveria ser sempre sinónimo de avanço. Apócrifa ou não, a história tem a virtude de nos ensinar que as propostas políticas, mesmo as bem intencionadas, devem sempre ter em conta o atrito do real. Este governo também o sabe mas finge não saber: e é por isso que, diante de plateia amigável, lá vai dizendo que o que é preciso é multiplicarmo-nos, acreditar muito, bater punho, cerrar os olhos com força e desejar com convicção. E nós vamos assistindo, até ver.

Sobre o/a autor(a)

Historiador, doutorado em História, investigador do CES/UC.
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