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Diz-me o teu passado e fingirei desconhecer o futuro

A humanidade sempre ambicionou a previsão do futuro; os receios e hesitações seriam esvaziados de sentido e cada ação deixaria de ter uma sequela imprevisível, poupando-nos a horas de angústia e indecisão.

O mais aproximado que o ser humano conseguiu alcançar, para além do duvidoso folclore, em que búzios, cartas e qualquer outro veículo dúbio se limitam a construir palpites aleatórios, foi a cuidada análise do passado, de forma a entender algum padrão que permita prever o que esperar.

Usado erroneamente para perpetuar discriminações e estereótipos, o autêntico valor desta capacidade parece esquecido por Portugal no que concerne aos seus mais delicados assuntos.

Mergulhado numa calamidade social, onde os direitos aparentam tornar-se somente privilégios de alguns, os destinos do país encontram-se nas mãos daqueles cujo passado reconhecidamente conduziria ao desastre presente. Vivemos talvez a maior cegueira para a evidência presente e passada, preferindo arriscar num futuro que entendemos imprevisível, mas cujos contornos estão à vista de todos.

Terão os portugueses um masoquismo latente, uma memória tão curta que pouco se estende para além do instante presente ou simplesmente uma permissividade invulgar?

Eventualmente uma não antes vista combinação troikiana destas 3 entidades possa explicar a passividade com que um ministro, carrasco de um sistema de proteção social, sai impune do seu incumprimento para com este mesmo sistema. O “Homem da raça dos que paga o que deve”, o cidadão que por ser portador de um cartão de filiação partidária nunca brotou dos poros um pingo de suor para lutar pelo seu rendimento, que sendo um caloteiro se insurgiu contra uma Grécia que recusa uma dívida agiota. Não mais que uma sequela do perdão popular ao Portas dos submarinos ou ao Cavaco do BPN, e a prequela de tantos mais pecados de tantos, outros que se adivinham.

No rescaldo de um inverno caótico, que expôs (mais uma vez) as brechas que fraturam letalmente um sistema de saúde votado ao abandono, não houve qualquer resultado palpável, para além dos momentos de drama televisivo. Os atores do costume, quer do lado dos indignados, quer do lado dos culpados, cumpriram os seus papéis imaculados, com argumentos gastos que conduzem a conclusões há muito feitas e o hino da inércia perpetua-se. Mentem descaradamente os que negam poder prever o futuro neste caso, tão mau e o presente que nem um acaso divino evitaria a catástrofe.

Agrava-se este facto pela conivência dos próprios envolvidos neste caos: médicos, enfermeiros e utentes. Aos médicos couberam as demissões e denúncias da praxe; aos utentes a indignação que faz rejubilar o jornalismo sensacionalista, amainada pelos primeiros raios de sol; aos enfermeiros a conivência, entrincheirados em condições laborais precárias e vergonhosas. Alguns, ainda ousaram indignar-se em nome dos seus utentes, esquecendo a repetição diária da barbárie que este SNS comete, mas tendo em memória certamente as eleições próximas para a sua Ordem.

O esquecimento parece já ser a palavra de ordem, e daqui a um ano a indignação surgirá novamente em tom de espanto e estrondo. Hoje os utentes internados indignamente permanece o mesmo, tal como já o era antes, aliás como e há anos, os mesmos em que se tomou em mãos o desmantelamento do garante da dignidade e saúde de todos e para todos.

O presente parece apagar a capacidade de ver o por mais evidente passado. Não são os estereótipos que devemos reter mas sim as lições valiosas que insistimos em ignorar; as lições que impediriam Passos e Costas de governar, que impediriam o massacre de vidas e dignidade nos nossos hospitais, a destruição do trabalho justo, o abandono massivo de uma geração que desistiu de um país que há muito os maltrata.

Esta cegueira, que permitiu um BES depois de um BPN, que permite em todas as áreas os oportunistas que surgem em tempos eleitorais (escondidos e inúteis até que chegue a hora da ribalta), permite um Portugal sem futuro, que definha num presente facilmente adivinhado pelo passado.

Não faltará a capacidade de adivinhação, mas sim a coragem para querer um futuro diferente; faltará a coragem para mais do que esperar pela milagrosa e aleatória salvação e tomar nas mãos um futuro sem os erros do passado que insistimos em permitir que destruam o nosso presente.

Sobre o/a autor(a)

Enfermeiro. Cabeça de lista do Bloco de Esquerda pelo círculo Europa nas eleições legislativas de 2019
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