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Meher

Não é ficção. É tão real como a história de muitas e muitos que atravessam fronteiras, mares, encruzilhadas. Podia ser a minha ou a tua. Poderá vir a ser a nossa ou a vossa, porque não sabemos que águas nos estão reservadas e nada é permanente. Nada aqui é para sempre.

Esta história não acontece num espaço definido. Primeiro porque me recuso a aceitá-la como terminada, depois porque a sua ação não é aqui ou acolá, mas em todo o lado ou em sítio algum. Poderia dizer que se deu algures no mundo, naquele a que chamamos o nosso planeta. Nesta bola gigante de terra, água, ar e fogo que deveria ser de todas e de todos, mas que cada vez mais parece pertencer a uma elite de comando. E talvez não se possa chamar nosso ao local onde não somos livres para caminhar. Estamos confinados a definições fronteiriças e até muros que só algumas e alguns têm o direito de transpor.

Ele é um dos que arriscou passá-las, sem que tivesse permissão para isso, mas sabendo que não o fazer teria um preço elevado, possivelmente o da morte. Ainda era muito novo para morrer, ainda havia muitos sonhos a concretizar, muitas palavras a conhecer, muita gente para abraçar. Deixou tudo para trás e arriscou. Ousou partir na viagem que o colocaria em segurança.

Nada aconteceu como esperava. Prisão, trabalhos forçados, muita sede e um barco que afinal não cheirava a sonhos, mas a lágrimas e desalento. Ainda assim não desistiu. Aguentou-se. Não se tornou num dos muitos corpos que desaparecem no mar com o coração apertado por tudo abandonar e deixar-se guiar ao incerto. Sim, porque a decisão de partir não se toma de ânimo leve. Muitas vezes é repentina e forçada, porque a realidade assim o obriga, outras planeada, mas não é de todo tranquila.

As peripécias pormenorizadas da viagem – ele contou-me algumas - não me cabem a mim partilhá-las. Não será muito difícil imaginá-las, pois são muitos os relatos semelhantes que vamos lendo e ouvindo por aí. Eu conheci-o já em ‘espaço seguro’, sem correr risco de vida, porém com muitas inquietações, que se misturavam com suspiros de esperança e uma mão cheia de anseios. Recordo com pouca exatidão o dia que o vi pela primeira vez. Penso que foi numa roda de amigas e amigos, onde a arte se mistura com os afetos. Ele acabara de chegar a esse círculo e rapidamente nos conquistou.

Guardo comigo, isso sim com clareza e extremo afeto, uma panóplia de momentos que partilhámos, no palco e fora dele. O teatro amador tem destas aventuras e este grupo, onde nos cruzámos, aproveita-as ao máximo. Ele chegava quase sempre a sorrir, com uma alegria que contamina. Por vezes era até um pouco cansativo, mas acho que os abraços, os que constantemente oferecia, não foram sequer poucos perante o vazio que deixou.

Surpreendia-nos com as perguntas mais hilariantes, qual gaiato na idade dos porquês. A sua pureza, por vezes, soava estranha, sobretudo fora do grupo, mas é assim mesmo que ele é: um crescido pleno de ilusões, com a ingenuidade de uma criança e, por isso, mantinha uma enorme capacidade de tudo partilhar, sem filtros, sem maldade e muita curiosidade.

O tempo foi passando e ele deixou de conseguir disfarçar a angústia que, ao mesmo tempo, lhe morava no coração e naquela pele muito morena. Tinha marcas no corpo e no espírito, de alguma precariedade do mundo laboral, mas sobretudo da solidão que também abraçava.

Já conhecia o sabor de estar em segurança, o que só por si não completa ninguém. Somos mais que isso, muito mais. Faltava-lhe rumar atrás de algo ainda maior. Talvez ao sítio dos sonhos. Afinal, todos e todas temos esse direito, ainda que teimem em negá-lo, ainda que frequentemente seja minimizado ao ponto de nos tornarmos ridículos grãos de areia nesta grande bola chamada Terra.

Vicissitudes da vida a que ninguém escapa. Aos daqui e às de acolá. Às acomodadas e aos que estão movimentos constantes. Ele tomou mais uma decisão. Arriscou novamente e abalou, com os olhos húmidos, provavelmente de medo e alguma tristeza, é certo, mas também com muita esperança. Era isso que o movia, sempre.

Decidiu não se despedir. Deixou-nos abraços, aqueles abraços tão diferentes que quem os experimenta jamais esquece. Deixou retratos, saudades do seu jeito e até mesmo das iguarias que nos preparava com tanto amor. Hoje não quero lembrar o último momento em que nos vimos. Risquei-o da memória. Quero recordar todos os outros e principalmente acreditar que onde quer que ele esteja continuará a lutar, a acreditar e a abraçar-nos.

Partiu, como muitas e muitos partem rumo ao desconhecido, com o alento de dias mais dignos, provando-nos a cada instante que a igualdade e a diversidade são das maiores riquezas deste também pequeno grão de terra onde nos coube nascer.

Sobre o/a autor(a)

Trabalhadora da administração local
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