You are here

Crítica institucional / Práticas instituintes

Thomas Hirschhorn, Gramsci Monument (2013)

O fundamental na ideia de práticas (artísticas/culturais) instituintes é a confrontação com o “democratismo”. Por Rui Matoso – (Terceira parte do artigo “Para que servem as instituições culturais em épocas de crise?)

 

Anger is an Energy.
John Lydon

Artistic freedom today should be tied to a different ideological project: an exploration
of a principled fundamental democracy in which the imaginative force of art is
a primary tool do defy rather than secure democratist monopolies of power.
Jonas Staal

No decurso das primeiras vanguardas, designadamente do dadaísmo, desenvolveram-se práticas artísticas sustentadas pela vontade de transformar as estruturas sociais, aproximando arte e vida num mesmo plano através de estratégias de arte crítica e política. A história da arte contemporânea é prolixa na diversidade e intensidade de ações e processos que visam alterar a correlação de forças e poder no campo artístico e social. Joseph Beuys criou a “Universidade Livre” fundada sobre princípios de autonomia e autogestão. Hans Haacke vem trabalhando subversivamente por dentro das instituições, desconstruindo formas de dominação financeira e ideologias totalitárias. Mais recentemente, artistas como Christoph Schlingensief (1960-2010) ou coletivos como Rimini Protocol criaram projetos que provocam instabilidade na perceção de fenómenos sociais, económicos e políticos. Outros criam instituições e movimentos verdadeiramente implicados em problemáticas sociais como Filip Noterdaeme e o seu Homeless Museum of Art, o Institute For Human Activities de Renzo Martens, a Church of Stop Shopping do Reverendo Billy ou o Imigrant Movement Internacional impulsionado por Tania Bruguera.

Na vertente da Crítica Institucional são os artistas quem desencadeia as ações numa luta de tomada de posições na esfera das artes contemporâneas, no combate contra a mercadorização absoluta ou privatização do valor artístico pelo mercado. A instalação “GERMANIA” de Hans Haacke para o pavilhão alemão da Bienal de Veneza de 1993 é considerada paradigmática pela maneira como expôs as relações entre ideologia, história e instituições de arte.

O pensamento e a ação crítica relevam do questionamento da obediência absoluta e da submissão dos sujeitos às formas autoritárias de governação. Nesse sentido a crítica requer uma prática autocrítica que produza a transformação das subjetividades, implica por isso uma vontade de não querer ser governado através de políticas injustas e ilegítimas, mas também recusar as verdades ou as narrativas impostas de forma autoritária.

Uma das linhas de intervenção neste campo é o denominado artivismo, cujas práticas vêm sendo implementadas dentro e foras das instituições culturais, tornando-se muitas das vezes aliadas dos protestos cívicos ocorridos nas cidades. Em 2014 Rui Mourão criou múltiplas performances artivistas no confronto direto com instituições culturais públicas, designadamente no Museu de Arte Contemporânea - Museu do Chiado com a exposição Os Nossos Sonhos Não Cabem nas Vossas Urnas! Apesar de nas últimas décadas o activismo artístico performativo estar praticamente desaparecido da rua, o coletivo Felizes da Fé (1985) trouxe entre os anos 80 e 90 uma forma peculiar de provocar a ordem burguesa conservadora ligada ao regime de Cavaco Silva. No setor das artes visuais portuguesas, apesar de serem escassas as exposições com abordagens críticas e interventivas, a recente exposição O Tempo e o Modo, para um Retrato da Pobreza em Portugal, afirma que “o pensamento cultural e artístico deve contribuir para uma reflexão e observação do estado da Pobreza, analisando a sua evolução histórica, de forma a permitir um entendimento esclarecido e crítico da mesma, que seja útil à sociedade e aos cidadãos... numa proposta clara de pensamento como intervenção.” (Emília Tavares e Paulo Mendes, 2014).

A prática crítica, seja em que campo for, não emana automaticamente de uma pressuposta liberdade inata da alma, nem é fruto da espontaneidade individual, pelo que a sua existência de facto só é viável em contextos culturais propícios à reflexão e interrogação das formas de poder, à análise dos discursos e das práticas de governação, ou à desordenação das regras institucionais de produção e distribuição de conhecimento. Agir criticamente no atual contexto requer um entendimento de que os mecanismos de coerção e condicionamento do capitalismo tardio e da tecnopolítica (biopolítica, biopoder, neuropoder,...) são hoje substancialmente distintos e atravessam integralmente os corpos e as mentes humanas, como Foucault, Deleuze ou Guattári souberam demonstrar. A passagem da sociedade disciplinar (Foucault) a uma sociedade de controle (Deleuze) introduziu novos dispositivos técnicos que estendem as possibilidades de vigilância ao infinito e aceleram as ligações ao mundo virtual e tecnológico. O controle é hoje um dispositivo global contínuo e ilimitado, baseado na rapidez e no curto prazo, ao passo que a disciplina era administrada na longa duração. O homem pós-moderno já não é exclusivamente disciplinado pelas estruturas hierárquicas de poder, mas passou a ser também o homem endividado pela fluidez abstrata do capitalismo.

Na nossa atualidade pós-política, em que o discurso dominante tenta obstruir a própria possibilidade de uma alternativa à ordem atual (“there is no alternative”, já dizia a baronesa Margaret Thatcher em 1970), todas as práticas que possam contribuir para a subversão e a desestabilização do consenso neoliberal hegemónico são certamente bem-vindas. É isso que Chantal Mouffe advoga quanto se questiona acerca da conceção de estratégias artísticas na política e estratégias políticas na arte, mas também sobre o tipo de relação a ser estabelecida com as instituições: devem as práticas artísticas críticas estar envolvidas com as atuais instituições, com o objetivo de transformá-las ou devem abandoná-las por completo?

O conceito de práticas instituintes, permite-nos reformular as relações ente crítica e instituição cultural, vendo na crítica uma condição necessária aos processos de gestão, produção e mediação cultural, e na possibilidade de re-instituir a partir da intensificação da democracia e da participação. Desde logo isto significa, tal como referido anteriormente, partir do reconhecimento, análise e problematização criativa dos problemas concretos que afetam sociedades e grupos sociais concretos. Debater os problemas e elaborar estratégias e narrativas alternativas, construir visões contra-hegemónicas que favoreçam as transformações desejadas.

Diríamos então que a passagem de um paradigma fundado no protagonismo e iniciativa do artista (Crítica Institucional) para uma outra visão mais abrangente onde o artista, o ativista entre outros atores sociais colaboram na construção de imaginários sociais alternativos ou na democratização das instituições (Práticas Instituintes), se deve à necessidade de reagir a um agravamento global das condições de vida e à intensificação complexa das crises no decurso da história catastrófica do capitalismo. A mobilização da “imaginação radical” (imaginar desde a raiz dos problemas) através de ações que convoquem a participação da arte na esfera sociopolitica e na vida comum. A imaginação radical, diz Max Haiven, “surge na maioria das vezes de forma mais vibrante em quem encontra a maior ou a mais aguda opressão e exploração, e muitas vezes é atrofiada e diluída em quem goza de maiores privilégios”.

O fundamental na ideia de práticas (artísticas/culturais) instituintes é a confrontação com o “democratismo”, que por um lado representa o dispositivo global de manutenção de monopólios de poder (político, militar, financeiro) sob uma aparência superficial (mediática) de democracia cada vez mais exposta nas suas verdadeiras intenções de dominação e controle; e por outro, está incorporado nos nosso habitus e estruturas de pensamento individuais e coletivas. Trata-se portanto de abrir espaços glocais de crítica e criação, momentos constituintes da democracia fundamental (Jonas Staal), logo, da democratização de todos os campos, da ecologia, economia, política, arte, etc. Algumas dessas novas práticas instituintes terão passado, para além de noutros territórios, também por aqui:

Truth is Concrete um acontecimento que durou 24 horas/7 dias, e que reuniu mais de 200 artistas, ativistas e teóricos para produzir e discutir estratégias e táticas em arte e política.

Beyond Allegories um debate no qual participaram 250 artistas, políticos, representantes sindicais, professores universitários, dramaturgos, representantes de organizações de refugiados e ONGs, jornalistas e estudantes. Reuniram durante sete horas na Câmara Municipal de Amesterdão para discutir o papel da arte no âmbito da governança, mobilização política e ação .

Artist Organisations International reúne mais de vinte representantes de organizações fundadas por artistas cujo trabalho enfrenta as atuais crises na política, economia, educação, migração e ecologia. Apresenta igualmente uma agenda sociopolítica que liga o campo da ética com a estética. Não sendo apenas um meio de "questionamento" e "confrontação", a organização situa-se no campo da luta política diária.

ECLETIS (European Citizens' Laboratory for Empowerment: Cities Shared) é um projeto de cooperação entre diversas estruturas artísticas e culturais europeias, visando a implementação de processos para favorecer a integração dos cidadãos na tomada de decisões urbanas, valorização da diversidade europeia, o diálogo intercultural e as novas tecnologias como fontes para estimular a criatividade e novas práticas.

Artigo de Rui Matoso para esquerda.net. Este artigo é a terceira parte de um conjunto de três artigos. O primeiro é Para que servem as instituições culturais em épocas de crise? e o segundo é Instituições culturais / Capitalismo semiótico

Artigos relacionados: 

Sobre o/a autor(a)

Investigador e docente universitário
Termos relacionados Cultura
(...)