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Não somos a dívida de ninguém: os moradores de Azeitão em risco de despejo

Depois de 25 anos de entrega de amortizações mensais, os moradores foram surpreendidos com a insolvência da cooperativa e as suas habitações foram incluídas na massa insolvente. Como é que se explica e justifica a arbitrariedade de punir alguém com uma dívida que não contraiu?

Nos últimos meses de 2012, algumas dezenas de famílias residentes em Azeitão pensaram finalmente poder dizer que as casas que habitavam eram suas. Entre Junho e Dezembro desse ano, ficou coberto o valor total das habitações, depois de 25 anos de entrega de amortizações mensais à cooperativa que as construiu. Julgavam com alívio que o mais difícil estava feito e que ficava apenas a faltar a formalização da propriedade através da realização da escritura. Mas, quase seguidamente, em Janeiro de 2013, os moradores foram surpreendidos com a insolvência da cooperativa e, com as escrituras por realizar, as suas habitações foram incluídas na massa insolvente para ressarcir os credores da mesma. O conforto do dever cumprido rapidamente deu lugar à angústia, ao desespero e à revolta. Terem pago e habitado as casas durante quase três décadas parecia não ser suficiente para afirmar que eram suas. Em Setembro de 2014, estas casas, com gente no seu interior, apareciam em leilão nas páginas de um jornal, num anúncio igual a outro anúncio qualquer. A venda foi suspensa na altura pela juíza do processo, mas soube-se há poucas semanas que está prestes a ser retomada.

A ameaça que paira sobre os moradores destes dois bairros de Azeitão tem o consentimento do instituto estatal a quem cabe a salvaguarda do direito à habitação, o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), na medida em que é credor hipotecário das habitações e tem privilégio na graduação de créditos

Cada uma destas casas guarda várias histórias de vida e muitas dessas histórias confundem-se com as suas paredes. Sei-o porque as conheço por dentro, cresci numa delas. Para algumas das pessoas que as habitam, é tudo o que de sólido lhe resta e por isso sei que não exageram quando afirmam que “nem mortos nos tiram as casas”. Até ficarem pagas, foi percorrido um longo percurso, em alguns casos com sacrifício, e a meta atingida parecia prometer alguma estabilidade e conforto. A maior parte dos moradores possui poucos recursos económicos e a ilusão de segurança, que uma vida sempre no limite ainda proporcionava, cedeu perante o abalo económico e social dos últimos anos. Hoje, na sua maioria, dependem de pequenas reformas. Noutros casos, a crise trouxe o desemprego e entregou à caridade a satisfação das suas necessidades de subsistência. Numa existência em que a dignidade sempre foi fruto de uma batalha quotidiana, vêem agora ser atropelado mais um direito, aquele que por momentos lhes pareceu estar assegurado: o direito à habitação.

Como é que se explica e justifica a arbitrariedade de punir alguém com uma dívida que não contraiu? Há vários factores em jogo. E não se encontra resposta para essa pergunta sem ter presente o quadro político e económico que tem regulado as nossas vidas nos últimos anos. Podemos começar por aí. Uma das coisas que é dita com frequência aos moradores, nomeadamente nos seus contactos políticos e institucionais, é que este é um caso jurídico e que, como tal, deve ficar confinado aos tribunais, em respeito pela democrática e elementar separação de poderes. Esta afirmação vem geralmente acompanhada de declarações de solidariedade, mas tem como efeito imediato a demissão de oferecer ajuda para além do plano do discurso. Por este caminho, em nome da dívida e da burocracia, entendendo-as como questões meramente técnicas, abre-se espaço para legitimar qualquer barbaridade. Achar que se está a fugir da “sujidade” da política quando se entrega a vida de pessoas à suposta higiene de uma resolução técnica, é uma ilusão que não só não faz nada pela preservação da democracia como é em si uma forma particular de tirania.

A questão política começa aí. E reforça-se na constatação de que está em causa a violação de um direito constitucional fundamental. Essa violação revela-se particularmente perversa por duas razões: em primeiro lugar, por as pessoas em causa terem nestas habitações a sua única residência há décadas, por terem coberto o seu custo na totalidade e por não terem meios para encontrar outra. Em segundo lugar, porque a ameaça que paira sobre os moradores destes dois bairros de Azeitão tem o consentimento do instituto estatal a quem cabe a salvaguarda do direito à habitação, o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), na medida em que é credor hipotecário das habitações e tem privilégio na graduação de créditos.

O IHRU pretende usar a sua condição de credor hipotecário para manter a propriedade das mesmas com o objectivo de arrendá-las

As suas intenções e as atitudes que tem tomado no âmbito do processo não se coadunam com os deveres que este instituto público tem a obrigação de cumprir. Desde logo, também ele se tem esforçado por afastar a sua responsabilidade escondendo-se no domínio da técnica. Como o presidente do instituto, Vitor Reis, afirmou à comunicação social na sequência de uma reunião com os moradores, este “defenderá intransigentemente o interesse público com a garantia de que os moradores de Pinhal de Negreiros e Vendas de Azeitão, no concelho de Setúbal, não serão abandonados”. Ninguém duvida. Mas a chave desta declaração está na distinção que estabelece entre “interesse público” e os moradores, como se fosse alheio ao interesse público atirar injustamente para o olho da rua dezenas de famílias ou como se estas famílias tivessem culpa em que este tenha sido lesado. O que é que se pretende ao estabelecer esta distinção? A resposta simples é: legitimar uma expropriação forçada. No lugar de entregar a propriedade das casas aos moradores, formalizando-a através da escritura, como seria a sua obrigação, o IHRU pretende usar a sua condição de credor hipotecário para manter a propriedade das mesmas com o objectivo de arrendá-las. Isso percebe-se não só pela insistência com que afirma, praticamente desde o início do processo, que os moradores pagavam uma renda e não uma amortização (procurando negar, por essa via, que pagaram as casas), como pela política que o actual presidente do IHRU, Vitor Reis, assumiu seguir quase no princípio do seu mandato: colocar no mercado social de arrendamento todas as casas que o instituto recuperar de situações de incumprimento de crédito. Uma opção que podia ser perfeitamente legítima caso houvesse a sensibilidade social de não fazer recair sobre os mais vulneráveis as dívidas de outros, especialmente quando estes cumpriram com a sua parte, como acontece neste caso. Ainda por cima, implicando uma expropriação em benefício de alguns credores para quem estas casas não são mais do que números.

Desde os anos 80, vemos que as cooperativas serviram mais para substituir o Estado na promoção de habitação social do que para promover uma experiência económica alternativa, o que teve como resultado que os seus sócios não fossem propriamente cooperativistas, mas sim pessoas à procura de habitação a preços acessíveis para os seus rendimentos

Um dos artifícios usados para punir os moradores pelo prejuízo do erário público é confundi-los com a direcção da cooperativa, responsabilizando-os pela péssima gestão desta. Essa confusão ignora convenientemente tanto a realidade jurídica como a realidade prática e histórica das cooperativas em Portugal. Desde os anos 80, vemos que estas serviram mais para substituir o Estado na promoção de habitação social do que para promover uma experiência económica alternativa, o que teve como resultado que os seus sócios não fossem propriamente cooperativistas, mas sim pessoas à procura de habitação a preços acessíveis para os seus rendimentos.

Por trás de tudo isto, há, ainda, um preconceito fortemente ideológico que pretende condenar todas as práticas colectivas, em especial quando supostamente tentam escapar ao domínio do mercado. Isto tem sido lembrado com frequência aos moradores, nuns casos de forma explícita, noutros de forma subreptícia. Um exemplo: numa reunião com autarcas locais em que marquei presença na condição de morador de um destes bairros, um dos presentes, enquanto manifestava a sua solidariedade, deixou escapar com uma satisfação mal disfarçada que “afinal parecia que os projectos colectivos de trabalhadores não resultavam assim tão bem”, usando a ocasião para promover o seu próprio dogma político e económico.

Responsabilizar os moradores pelo desfecho da cooperativa permite transformar o orgulho em ter casa própria na culpa e na vergonha de carregar uma dívida

Tudo o que atrás foi descrito assenta, invariavelmente, num enorme paternalismo. É esse paternalismo que permite que se mostre solidariedade e se reconheça a enorme injustiça em causa e, em simultâneo, se considerem justas ou inevitáveis as consequências imorais que recaem sobre estas pessoas. Fazê-las pagar por uma dívida que não lhes respeita e para a qual não contribuíram, parece ser, segundo alguns, um castigo justificado por terem “escolhido” uma fantasia colectivista para obter aquilo que todos deviam ter por direito. Responsabilizar os moradores pelo desfecho da cooperativa permite transformar o orgulho em ter casa própria na culpa e na vergonha de carregar uma dívida. É aqui que a dívida se encontra, então, com a sua função primordialmente moral. E, como tem sido regra, quem paga são aqueles que estão na base da pirâmide social.

Sobre o/a autor(a)

Morador, convidado pelo esquerda.net
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