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As causas da matança de Paris, entrevista com Gilbert Achcar

Gilbert Achcar fala sobre o massacre perpetrado na Charlie Hebdo em Paris, a onda de repressão e islamofobia que se seguiu, a esquerda em França e a necessidade internacional de organizar uma resposta antirracista e anti-imperialista, em entrevista a Ahmed Shawki.
Foto do site Socialist Worker

- Ahmed Shawki: Face ao ataque contra a Charlie Hebdo, qual tem sido a reação da sociedade francesa em geral e do Estado francês e da classe dirigente em particular?

- Gilbert Achcar: A reação tem sido a que era de esperar. A reação inicial foi de choque massivo, algo parecido com a reação inicial ao 11 de setembro nos Estados Unidos, ainda que obviamente seja um grande exagero colocar ambos os ataques em pé de igualdade como muitos fizeram, especialmente em França.

E, claro, o choque foi explorado de imediato pelo governo francês da mesma forma em que o 11 de setembro foi aproveitado pela administração Bush para silenciar os críticos e conseguir um apoio mais amplo em nome da “unidade nacional”. De repente, a popularidade de François Hollande subiu como a espuma a partir de um nível muito baixo. O mesmo aconteceu com George W. Bush, cuja popularidade era bem escassa antes do 11 de setembro, conseguindo aumentá-la para além do que alguém pudesse imaginar.

Deram-se reações muito parecidas em ambas as sociedades, que ficaram paralisadas e aterrorizadas; certamente que os crimes foram horríveis. Em ambos os casos, a classe dirigente aproveitou-se do choque para despertar sentimentos nacionalistas e conseguir apoios para o Estado: Em França, as forças policiais têm sido aclamadas como grandes heróis, mobilizando várias dezenas de milhares de polícias para caçar três lunáticos assassinos. Sem dúvida, os bombeiros de Nova York mereceram muito mais elogios pela sua valentia.

Não há nada de muito original em tudo isto. Mas, pelo contrário, é bastante original a forma como os debates foram evoluindo posteriormente.

Como toda gente sabe, o ataque contra a Charlie Hebdo e o ataque antissemita contra um supermercado kosher em Paris foram perpetrados por dois jovens de ascendência argelina e um de ascendência maliana, os três nascidos em França. Nos últimos dias houve uma mudança importante na discussão sobre os ataques, suavizando-se um pouco no sentido de reconhecer cada vez mais o facto de que algo está a falhar na sociedade francesa: a maneira como trata as pessoas de origem imigrante.

A raiz do problema é a situação das populações de origem imigrante em França. Um indício óbvio e muito eloquente disto é o facto da maioria dos presos que se encontram nas cadeias francesas serem de origem muçulmana, ainda que os muçulmanos constituam menos de 10% da população. E temos também o facto relacionado de a sociedade e o Estado francês nunca terem realmente acertado as contas com o seu legado colonial

Esta mudança chegou a um ponto em que o Primeiro-ministro francês, Manuel Valls, afirmou publicamente, duas semanas após o ataque, que em França havia um “apartheid territorial, social e étnico” em relação às pessoas de origem imigrante. Essa é uma descrição extremamente forte e, como era de esperar, foi massivamente criticada, até dentro do gabinete a que Valls preside.

Mas, de alguma forma, divulgou a reivindicação daqueles que desde o princípio diziam que estes terríveis ataques fariam com que as pessoas pensassem, sobretudo, nas condições que levaram os jovens a um tal nível de ressentimento, que estiveram dispostos a se lançar em ataques suicidas para matar. Nenhuma razão pode servir de desculpa para os assassinatos perpetrados, mas é indispensável investigar a origem desse ódio e ressentimento em lugar de cair na inepta explicação dada por George W. Bush depois do 11 de setembro: “Odeiam-nos pelas nossas liberdades”.

Isto leva-nos à raiz do problema, que é aquela a que o primeiro-ministro francês se estava a referir. A raiz do problema é a situação das populações de origem imigrante em França. Um indício óbvio e muito eloquente disto é o facto da maioria dos presos que se encontram nas cadeias francesas serem de origem muçulmana, ainda que os muçulmanos constituam menos de 10% da população. E temos também o facto relacionado de a sociedade e o Estado francês nunca terem realmente acertado as contas com o seu legado colonial.

Sobre este último tema, chama a atenção que o autoexame da sociedade norte-americana sobre a guerra de Vietname tenha sido bem mais radical e amplo – refletido na imensa mobilização havida dentro dos próprios EUA contra essa guerra – do que foi em França em relação à guerra da Argélia, ainda que esta última não tenha sido menos brutal, se não mais, e se tenha dado após um século de ocupação colonial selvagem daquele país.

A França é um país onde, acredite-se ou não, o parlamento votou em 2005 – isto é, há apenas dez anos, não há meio século! – uma lei sobre o legado colonial que homenageava os homens e mulheres, especialmente os militares, que tomaram parte na ação colonial. E pedia-se, entre outras coisas, que as escolas ensinassem “o papel positivo da presença francesa no ultramar, especialmente no Norte de África”. Esta parte particular da lei foi rejeitada por decreto presidencial um ano depois de se ter realizado um imenso protesto, organizado por organizações de imigrantes, a esquerda, historiadores e professores. Mas o só facto de uma lei de tal teor ter sido aprovada por maioria parlamentar é simplesmente escandaloso.

Podes contar-nos algo mais sobre as reações à declaração do primeiro-ministro sobre o “apartheid” de França? Porque é uma declaração surpreendente.

É muito surpreendente. Isso sim, Valls não é exatamente um radical nem sequer um progressista. Pertence à ala direita do Partido Socialista. Foi ministro do interior antes de se tornar primeiro-ministro e foi criticado pela direita por entrar em concorrência com a extrema direita – com Marine Le Pen – tentando ver quem ia mais longe na questão da imigração. E agora, de repente faz esta declaração tão forte.

Não é estranho que tenham chovido críticas de muitos sectores, não só da oposição de direita mas também no seu próprio partido e até de algumas pessoas de esquerda, todos dizendo que tinha passado das marcas e que não deveria ter utilizado a palavra apartheid.

A situação das populações de origem imigrante em França aproxima-se à dos negros dos EUA. Essas populações concentram-se em zonas separadas na periferia das cidades e vivem em condições extremamente frustrantes. Além do mais, encontramos um racismo generalizado na sociedade francesa que se manifesta de diversas formas, entre elas a discriminação no emprego, na habitação

Os seus críticos mais sóbrios assinalaram que não há apartheid legal em França, ao contrário do que existiu há umas décadas na África do Sul ou no Sul dos EUA há meio século. Mas ninguém pode negar seriamente a realidade de uma segregação “territorial, social e étnica” em França que é similar à que ainda prevalece nos EUA.

A situação das populações de origem imigrante em França aproxima-se mais, de facto, à dos negros dos EUA que ao apartheid em sentido estrito. Essas populações concentram-se em zonas separadas na periferia das cidades e vivem em condições extremamente frustrantes. Além do mais, encontramos um racismo generalizado na sociedade francesa que se manifesta de diversas formas, entre elas a discriminação no emprego, na habitação, etc.

Neste último aspeto, a França está até pior que os EUA, claro que não vamos ver rapidamente uma pessoa de ascendência africana eleita para presidente de França, isso só acontece na imaginação selvagem de um infame novelista francês islamofóbico. É realmente – e lamentavelmente – bem mais provável que seja eleito um candidato de extrema direita para a presidência francesa. Afinal, em 2002, Jean Marie Le Pen conseguiu chegar à segunda volta das eleições presidenciais, derrotando o candidato do Partido Socialista na primeira volta.

Isto leva-nos a uma questão relacionada com a extrema direita francesa, que é muito poderosa a nível eleitoral, com a filha de Le Pen, Marine, dirigindo uma “reformada” Frente Nacional. O que eu acho é que a Frente Nacional, que baseia historicamente a sua inspiração na extrema direita – incluindo a direita fascista –, está agora a tentar incorporar nas suas fileiras dirigentes dos gays, de outras minorias, dos judeus. Mas está a assinalar a população imigrante, e em particular os muçulmanos, como o “novo inimigo”. É essa, mais ou menos, a trajetória?

Em termos gerais, a extrema direita na Europa atual, exceto os extremistas fanáticos, não se centra no antissemitismo, nem sequer na intolerância contra os homossexuais. De facto, uma das principais figuras da extrema direita da Holanda é abertamente gay e costumava justificar a sua islamofobia referindo-se à suposta homofobia dos imigrantes de origem muçulmana.

Por tanto, essa não é a plataforma da extrema direita dos nossos dias. O objetivo favorito do seu discurso do ódio é o islão. Os muçulmanos são os seus bodes expiatórios, muito mais que os judeus ou qualquer outra vítima do fascismo e do nazismo das décadas de 1930 e 1940, exceto os ciganos, que ainda continuam a ser o alvo de muito ódio racista. Mas neste momento é o islão que é, de longe, o principal alvo do ódio da extrema direita.

A ideologia islamofóbica é comum à extrema direita por toda a Europa, embora talvez não tanto em relação ao Partido da Independência britânico, que ataca todos os imigrantes, incluindo os que procedem de países da União Europeia

Esta islamofobia apresenta-se frequentemente com a pretensão de que não se trata de racismo, de que só se está a recusar a religião e não os próprios muçulmanos, desde que não levem a cabo as suas práticas como tais.

Ou seja, há “maus muçulmanos” e “bons muçulmanos”, sendo os últimos aqueles que “bebem álcool e comem porco”, isto é, os que não são religiosos e se adaptam totalmente à cultura ocidental cristã. Os muçulmanos melhor recebidos – em sentido étnico, claro – são a pequena minoria que se incorpora no coro islamofóbico, procurando recompensa pela sua colaboração, tal como os nativos coloniais que trabalhavam para os seus amos coloniais.

É esta abordagem anti-islão que impregna as manifestações organizadas na Alemanha por um movimento que afirma estar a lutar contra “a islamização do Ocidente”. Este tipo de ideologia é comum à extrema direita por toda a Europa, embora talvez não tanto em relação ao Partido da Independência britânico, que ataca todos os imigrantes, incluindo os que procedem de países da União Europeia.

Foi sugerido que a esquerda francesa faz um escasso trabalho em relação ao racismo institucional existente na sociedade francesa. Pensas que isso é assim?

Sem dúvida. A esquerda francesa – e por tal estou a referir-me desde o que costuma chamar-se “esquerda radical” até à esquerda do Partido Socialista, a que eu não chamaria realmente “esquerda” – tem um pobre historial em relação às pessoas de origem imigrante. Esta é uma falha importante, ainda que, claro, possas encontrar situações parecidas na maioria dos países imperialistas.

A ausência de uma ligação forte com estas populações, e especialmente com os seus jovens, significa que há poucos estímulos quando o ressentimento que se acumula entre eles por razões legítimas vai na direção errada, que em casos extremos leva ao fanatismo assassino a que assistimos.

Os registos históricos do Partido Comunista francês em relação ao anticolonialismo, especialmente no caso da Argélia, estão longe de ser limpos, em sentido geral. Em França, a luta contra a discriminação étnica e o legado colonial não foi uma questão fundamental nas ações da esquerda, e isto levou muitos jovens que se sentiam atraídos para a esquerda a recusá-la em algum momento e a desenvolver sentimentos de muita rejeição face a ela.

Isto está habitualmente ligado com uma tradição da esquerda francesa que se poderia chamar “secularismo radical” ou “fundamentalismo secular”.

Estás a referir-te à “laicidade”?

“Laicidade” significa secularismo. Há algo para além disso, chamemos-lhe tradição “anticlerical”, que, em França, foi muito forte na esquerda a nível histórico. Pode adotar a forma de arrogância secular face à religião e aos crentes em geral.

Enquanto a religião atacada for a dominante, não há um grande problema, ainda que depois possa ser politicamente contraproducente. Como o jovem Marx assinalou convenientemente, a mesma religião que é uma ferramenta ideológica nas mãos das classes dominantes pode ser também o “suspiro de alívio dos oprimidos”.

Mas isto é muito mais certo quando a religião em questão é a fé particular de uma parte oprimida e explorada da sociedade, a religião dos oprimidos, como no judaísmo ontem e no islão hoje – no Ocidente –. Não podes ter a mesma atitude face ao judaísmo na Europa da década de 1930, por exemplo, que a Israel de hoje em dia; nem a mesma atitude perante o islão na Europa atual que nos países de maioria muçulmana. Do mesmo modo, não podes ter a mesma atitude perante a cristandade, por exemplo, no Egito de hoje em dia, onde os cristãos são uma minoria oprimida, que nos países de maioria cristã.

A Charlie Hebdo é um exemplo flagrante do secularismo arrogante da esquerda, a firme crença que o secularismo e o anticlericalismo são princípios básicos da tradição de esquerda. Consideram-se parte de uma identidade de esquerda, juntamente com o feminismo e outras causas emancipatórias

Este é o problema com a Charlie Hebdo. Algumas das pessoas envolvidas na Charlie Hebdo eram muito de esquerda. Stéphane Charbonnier, conhecido como Charb, o editor da revista, que foi o alvo principal dos assassinos, era em qualquer padrão um homem de esquerda. Tinha laços estreitos com o Partido Comunista e com a esquerda em geral. O seu funeral decorreu com a melodia da Internacional, e o elogio que dele fez Luz, uma sobrevivente da equipa editorial do Charlie Hebdo, incluiu uma amarga crítica à direita e à extrema direita francesas, ao Papa e também a Benjamin Netanyahu.

Neste sentido, a comparação que alguns têm feito da Charlie Hebdo com uma publicação nazi que publica caricaturas antissemitas na Alemanha nazi é completamente absurda. A Charlie Hebdo não é, de forma nenhuma, uma publicação da extrema direita, e a França atual não é, decididamente, um Estado de estilo nazi.

A Charlie Hebdo é antes um exemplo flagrante do secularismo arrogante da esquerda que mencionai antes, que é uma atitude generalizada na esquerda de boa fé, isto é, a firme crença que o secularismo e o anticlericalismo são princípios básicos da tradição de esquerda. Consideram-se parte de uma identidade de esquerda, juntamente com o feminismo e outras causas emancipatórias.

Estou consciente que um dos principais debates na esquerda francesa, ao longo de mais ou menos os últimos dez anos, se centrou na questão do véu e nos direitos das mulheres muçulmanas a usar o hijab em público. Podes falar-nos dos aspetos implícitos nesse debate?

Esse é outro exemplo do mesmo problema. Surgiu em 1989 com a questão das raparigas que iam para a escola com lenço na cabeça contando com o apoio das suas famílias, e foram expulsas por insistirem em levá-lo. Esta situação levou a que fosse promulgada uma lei, em 2004, que proíbe os símbolos religiosos “ostentosos” na indumentária nos escolas públicas.

O problema principal deste secularismo arrogante é a crença em que a libertação pode “impor-se” aos oprimidos

Parte da esquerda – na realidade eu diria que a imensa maioria da esquerda francesa, incluindo o Partido Comunista – apoiou esta proibição em nome de “ajudar” as jovens a lutar contra a imposição opressiva do lenço por parte das suas famílias, e na convicção de que já que o uso do véu é um símbolo da opressão das mulheres, proibi-lo era uma forma de desafiar essa opressão, assim como de manter o carácter laico das escolas públicas.

O problema principal deste secularismo arrogante – poder-se-ia dizer dessa arrogância tão orientalista – é a crença em que a libertação pode “impor-se” aos oprimidos. A ideia é que ao te obrigarem a tirares o lenço, te estou “a libertar”, gostes ou não. Não é preciso dizer que isto não é senão uma reprodução exata da mentalidade colonial.

Acho que para algumas pessoas, essa crítica à esquerda francesa pelo seu secularismo arrogante se mistura com a vacilação a fazer uma análise de esquerda do islamismo político, especialmente a variante reacionária depois do ataque contra a Charlie Hebdo ou os ataques do 11 de setembro nos EUA. Abordaste o tema no teu livro “O choque de barbáries”, certo?

Efetivamente, escrevi esse livro depois do 11 de setembro. Quando te confrontas com um ataque como esse, é preciso utilizar inevitavelmente o termo “barbárie” para o descrever.

Agora, como deverão reagir os anti-imperialistas? Há duas formas possíveis. Uma, dizer: “Não, isto não é uma barbárie”. Isso é ridículo, porque é óbvio que o é. Por que não se deverão considerar igualmente bárbaros o massacre perpetrado pelo islamofóbico Anders Breivik, o fanático norueguês de extrema direita, em 2012, os massacres do 11 de setembro ou a matança de Paris, se é que isso importa? Este seria um caso extremo de “orientalismo ao contrário”, substituindo o desprezo para com o islão por uma posição muito ingénua e acrítica perante tudo o que se faça em nome do islão.

A barbárie dos fortes é a principal culpada e a causa fundamental que leva ao aparecimento de contrabarbáries no lado oposto. Este “choque de barbaries” é o verdadeiro rosto do que se descreveu, e ainda se continua a descrever, como “choque de civilizações”

O que é politicamente erróneo e perigoso não é o uso de termos como “barbárie”, “terrível” e similares, mas sim o da inadequada categoria política de “fascismo”. Muitos na esquerda francesa - o Partido Comunista, mas também membros da extrema esquerda e, mais recentemente, o filósofo pós-maoísta Alain Badiou – classificaram os ataques de Paris como “fascistas” e descreveram quem os perpetrou como “fascistas”.

Isto não tem nenhum sentido em termos sociopolíticos, já que o fascismo é um movimento de massas ultranacionalista cuja principal vocação é salvar o capitalismo esmagando qualquer coisa que possa ameaçá-lo, começando pelos movimentos de trabalhadores e pela promoção de um imperialismo agressivo. É uma tolice aplicar esta classificação às correntes terroristas inspiradas no fundamentalismo religioso em países dominados pelo imperialismo.

Esse uso da etiqueta “fascismo” borra tudo o que faz dele uma categoria sociopolítica caraterística. Se alguém deseja diluir uma categoria sociopolítica desta forma, então fenómenos como o estalinismo ou, mais ainda, as ditaduras baazistas no Iraque anterior a 2003, ou a Síria atual, mantêm traços muito mais parecidos com o fascismo histórico que a al-Qaida ou o pretendido Estado Islâmico no Iraque e na Síria.

O mau uso da etiqueta começou com os neocon na administração Bush e outros que chamavam à al-Qaida “islamo-fascismo”, e é muito lamentável que as pessoas de esquerda caiam nessa armadilha. O objetivo político óbvio do mau uso dessa etiqueta – já que se considera o fascismo como o mal supremo e o próprio nazismo como um avatar do fascismo – é justificar qualquer ação contrária, incluindo as guerras imperialistas.

Lembro-me bem de uma discussão, em que me convidaram para participar, em Paris imediatamente após o 11 de setembro, organizada pelo Partido Comunista. Um dos oradores, um importante membro desse partido, explicou que a al-Qaida e o fundamentalismo islâmico constituem o novo fascismo, contra o qual era legítimo apoiar a guerra dos Estados do Ocidente, da mesma forma que era legítimo que a URSS se tivesse aliado com os EUA e o Reino Unido contra os poderes fascistas na II Guerra Mundial. Pode encontrar-se um eco direto da mesma racionalidade na descrição neocon da “guerra contra o terror” no sentido de que se tratava de uma “Terceira Guerra Mundial” contra o “fascismo islâmico”.

Os jovens que perpetraram os assassinatos em Paris envolveram-se em organizações terroristas que se situam na extrema direita nos países de maioria muçulmana. A al-Qaida é uma consequência do wahabismo, a interpretação mais reacionária do islão e a ideologia oficial do reino saudita

Voltando à etiqueta de “bárbaro”, a outra forma de reagir, é claro, é dizer: Sim, esses massacres são realmente uma barbaridade mas são, em primeiro lugar, uma reação à barbárie capitalista-imperialista, que é muito pior. Essa é a reação que tiveram muitos na esquerda depois do 11 de setembro. Noam Chomsky foi provavelmente o mais proeminente entre aqueles que explicaram que, com tudo o que terrível foram os ataques do 11 de setembro, ficavam eclipsados pelos massacres perpetrados pelo imperialismo norte-americano.

No meu livro sobre “o choque de barbáries”, sublinhei que a barbárie dos fortes é a principal culpada e que é a causa fundamental que leva ao aparecimento de contrabarbáries no lado oposto. Este “choque de barbaries” é o verdadeiro rosto do que se descreveu, e ainda se continua a descrever, como “choque de civilizações”. Como Rosa Luxemburgo assinalou há num século: as dinâmicas da crise do capitalismo e o imperialismo não deixam outra opção a longo prazo que o “socialismo ou a barbárie”.

Os ataques do 11 de setembro em 2001, os de Madrid em 2004, os de Londres em 2005 e o recente de Paris, foram todos reivindicados pela al-Qaida, uma organização extremamente reacionária. Juntamente com outras organizações afins, são os inimigos jurados de qualquer esquerda nos países onde têm presença. Por exemplo, um destacado membro do denominado Estado Islâmico no Iraque e na Síria gabou-se de ter organizado o assassinato de dois importantes dirigentes da esquerda tunisina em 2013.

Os jovens que perpetraram os assassinatos em Paris envolveram-se em organizações terroristas que se situam na extrema direita nos países de maioria muçulmana. A al-Qaida é uma consequência do wahabismo, a interpretação mais reacionária do islão e a ideologia oficial do reino saudita e, como toda a gente sabe, o reino saudita é o melhor amigo dos EUA no Médio Oriente, exceto de Israel.

As pessoas de esquerda não devem aparecer a desculpar ou a apoiar de alguma forma organizações como essas. Devemos denunciá-las pelo que são, mas devemos também sublinhar simultaneamente que a responsabilidade principal no seu aparecimento é daqueles que em primeiro lugar começaram o “choque de barbáries”, e cuja barbárie é brutal numa escala incomparavelmente maior: as potências imperialistas e, sobretudo, os EUA.

O resultado da ocupação norte-americana no Iraque impulsionou realmente e de forma enorme a al-Qaida, permitindo-lhe apropriar-se de uma base crucial de território no Médio Oriente, quando anteriormente estava limitada ao Afeganistão. O que hoje se chama o Estado Islâmico no Iraque e na Síria não é senão um desenvolvimento do que era o ramo da al-Qaida no Iraque

Há realmente uma ligação direta e óbvia entre as duas. Os EUA, juntamente com o reino saudita, têm estado a fomentar durante décadas essas correntes fundamentalistas militantes islâmicas na luta contra a esquerda nos países de maioria muçulmana. Estas correntes estiveram durante muito tempo associadas com os EUA, uma colaboração histórica que culminou na guerra da década de 1980 no Afeganistão, quando os sauditas e a ditadura paquistanesa contavam com o apoio de Washington contra a União Soviética.

O que finalmente aconteceu é que, tal como na história de Frankenstein, algumas secções dessas forças se voltaram contra a monarquia saudita e contra os EUA. Esta é a história da al-Qaida: os seus fundadores estavam aliados com os EUA e com o reino saudita durante a luta contra a ocupação soviética no Afeganistão, mas voltaram-se contra ambos devido ao desembarque de tropas norte-americanas sobre solo saudita na preparação da primeira guerra dos EUA contra o Iraque em 1991.

Portanto, a administração de Bush pai provocou uma mudança radical de posição da al-Qaida contra os EUA com a primeira guerra contra o Iraque, e Bush filho reforçou-a com a invasão do Iraque. Esta última foi levada a cabo pondo em marcha imensas mentiras, uma das quais foi que era necessária para destruir a al-Qaida, ainda que não houvesse ligação alguma entre a al-Qaida e o Iraque. O resultado da ocupação norte-americana naquele país impulsionou realmente e de forma enorme à al-Qaida, permitindo-lhe apropriar-se de uma base crucial de território no Médio Oriente, quando anteriormente estava limitada ao Afeganistão.

O que hoje se chama o Estado Islâmico no Iraque e na Síria não é senão um desenvolvimento do que era o ramo da al-Qaida no Iraque, uma organização que não existia ali antes da invasão de 2003 e que viu a luz graças à ocupação. Ficou derrotada e marginalizada a partir de 2007, mas depois conseguiu ressurgir na Síria aproveitando as condições criadas pela guerra civil nesse país e a extrema brutalidade do regime sírio. E aí está, golpeando de novo agora no coração do Ocidente. Como diz o sábio provérbio popular: “Quem semeia ventos, colhe tempestades”.

Entrevista publicada em 2 de fevereiro de 2015 em socialistworker.org. Tradução para espanhol de Sinfo Fernández para Rebelión e para português de Carlos Santos para esquerda.net.

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