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Furacão Tsipras, por Francisco Louçã

Se a Europa se tornou o nome e a coisa da austeridade, o que pode fazer um governo de esquerda na Europa? E, se o centro desfaleceu, pode um partido de esquerda representar a aspiração e a mobilização popular realizando a sua ambição maioritária? Um e outro são uma agenda de curto prazo. Não há tempo para recuar nem oportunidade de corrigir. Por isso se pergunta: preparado?
"O programa do novo governo vive ou morre com a sua proposta fundamental, a reestruturação da dívida", assinala Francisco Louçã.

Alexis Tsipras quebrou os tabus (um governo de esquerda impossível na Europa?), os protocolos (o juramento perante as autoridades religiosas) e as tradições (o dress code ministerial). Não é pouco, mas será suficiente? Não é ainda nada. Agora é que vem o que é considerado impossível: conduzir uma reestruturação da dívida externa da Grécia em tal dimensão que permita ao país inaugurar o pós-austeridade e recuperar o controlo da economia para criar emprego. Está preparado e tem equipa para o fazer?

Não há resposta para essa questão, prognósticos só no fim. Até agora, ele beneficiou de duas circunstâncias únicas e não deve voltar a ter nada parecido. Descobriu em Merkel a sua maior aliada eleitoral, porque o governo alemão não compreende a suprema insensatez da arrogância perante um povo em que ainda é vivo quem se lembre de ver a suástica a assombrar o Partenon. Para cada grego, a chalaça de um ministro alemão, “vendam as ilhas”, traz o eco desse passado tenebroso, sobretudo quando sente a violência contida das regras berlinescas, como a exclusão dos desempregados do acesso ao serviço de saúde, cortesia do programa da troika. Além disso, Draghi deu o golpe de misericórdia na coligação entre a Nova Democracia e o PASOK ao excluir a Grécia da bazuca, o novo mecanismo de compra de dívida por emissão monetária, a não ser que se venha a submeter a novo programa. Os seus inimigos foram os seus aliados. O segundo factor, não menos importante, foi a implosão do sistema político e do seu centro quando a bipolarização se passou a fazer entre a esquerda e a direita, e bastaram três anos para que isso acontecesse. Os seus adversários desapareceram.

Tsipras herda desta vertigem dois problemas maiores, ambos inéditos no nosso mundo, pelo menos no intervalo de uma geração. Se a Europa se tornou o nome e a coisa da austeridade, o que pode fazer um governo de esquerda na Europa? E, se o centro desfaleceu, pode um partido de esquerda representar a aspiração e a mobilização popular realizando a sua ambição maioritária? Um e outro são uma agenda de curto prazo. Não há tempo para recuar nem oportunidade de corrigir. Por isso se pergunta: preparado?

Uma vida a procurar novas soluções

Alexis Tsipras, como é recordado na biografia esboçada nestas páginas, começou a sua vida política no movimento de estudantes comunistas. Assim, aprendeu as letras no Synaspismos (Coligação de Esquerda e Progresso), uma aliança efémera entre os dois partidos comunistas e outras forças, que foi mais tarde abandonada pelo KKE (o partido dito do exterior, pela sua ligação soviética). O núcleo do Synaspismos passou a ser só o Partido Comunista dito do interior, que rompera com a tutela quando da invasão da Checoslováquia e que se aproximou de posições eurocomunistas, mas com uma tonalidade própria que importa compreender porque é a chave da sua evolução futura. Ao rejeitar a herança estalinista e procurar soluções socialistas que resultem da democracia pluripartidária e do anticapitalismo, o Synaspismos virava a página de um século em que a Grécia, os Balcãs e a Europa Central se submetiam à Guerra Fria.

Tsipras viveu esse período em que o Synaspismos foi uma promessa que caiu de 13% (1989) e 10% (1990), antes da cisão, até 3,3%, o modesto início da nova Coligação da Esquerda Radical (Syriza) em 2004. Pequena subida em 2007 (para 5%) e ligeiro recuo em 2009 (para 4,6%, quando Tsipras entra no parlamento).

Alexis viveu portanto o entusiasmo da representação unitária da esquerda e depois a desilusão da cisão. E de novo um impulso unificador, mas mal sucedido no início: no Bloco de Esquerda conhece-se a lenda de um dirigente de topo do Syriza que, em 2009, desgostado com o mau resultado, se inscreveu também no partido português para fazer parte dos dois, temendo um tempo demasiado longo de recuperação na Grécia.

Em qualquer caso, a experiência política de Tsipras foi sempre marcada pela procura de convergências unitárias. Entre vitórias e derrotas, mais derrotas do que vitórias, a procura da unidade. Por isso, quando o Syriza saltou para a maioria e acolheu os dissidentes do PASOK e tantos outros, nestes últimos anos de bipolarização, era a sua concepção fundadora que se confirmava: abrangência e convergência para uma linha política irredutível no que considera essencial, a reestruturação da dívida. Foi assim que Tsipras chegou aqui.

Vale a pena sublinhar que esta tradição contrasta dramaticamente com a de muita da esquerda. E uma recordação talvez o ilustre melhor: quando em 2009 Alexis Tsipras visitou Lisboa e participou na manifestação do 25 de Abril na Avenida da Liberdade, apresentei-o a Jerónimo de Sousa, que estava a meu lado na primeira fila. Jerónimo cumprimentou-o com cordialidade, como seria de esperar. Mas o KKE pediu explicações ao CC do PCP, pouco tempo depois, por tal acto, considerado indigno. Essa esquerda grega tem a sua história.

Momento de decisão

“Lula ou Chávez”, diz o Financial Times, implicando que a política de Alexis Tsipras só pode ser o realismo cedente ou a demagogia. Escassa imaginação, como se toda a vida fosse a repetição eterna de um jogo de cartas marcadas: nem a Grécia tem petróleo para uma política distributiva ou clientelar, nem tem a dimensão continental que condiciona as superpotências, a começar pela mais poderosa de todas, a finança. E resta saber se espera facilidades. E, querendo ou não querendo, como responderá à maior de todas as ameaças, a que o Financial Times ignora ao colocar as suas analogias na longínqua América Latina, que é a União Europeia. Pois é em Berlim que está o problema – o que os militantes do Syriza registaram poeticamente com Leonard Cohen, “then we take Berlin...”.

Preparado, então?

O programa do novo governo vive ou morre com a sua proposta fundamental, a reestruturação da dívida. Mas não é só isso, ou só é isso para ser mais: aponta para um plano de investimento e criação de emprego, um alívio de emergência por razões humanitárias a desempregados, doentes e pessoas a quem a electricidade foi cortada e, mais perturbante para a velha Grécia, uma reforma fiscal que exige alguma forma de controlo de movimentos de capitais. Dito em economês, se o problema é a dívida externa e não só a dívida pública, então é preciso abater a dependência, reduzindo o endividamento e reorganizando o sistema bancário e ainda relançar o sistema produtivo com investimento, e a curto prazo só o dinheiro público é garantido. Tudo deve ser resolvido em poucos meses: até agosto, a Grécia deveria amortizar 6,7 mil milhões de euros ao BCE, e os seus bancos dependem da concessão de liquidez pelo banco europeu no dia a dia.

Para estar preparado para esta gestão do curtíssimo prazo, conjugando a aliança política que o suporte, evitando perturbações e realizando esta promessa, o primeiro governo que, desde o dia um da troika, é mesmo grego, precisa de se concentrar no essencial. Não se pode dar ao luxo de se distrair e sabe que as negociações com a União e o BCE serão as mais difíceis das suas vidas.

Muitos dos seus apoiantes sentiram-se por isso incomodados com a afirmação de Tsipras de que respeitará os tratados europeus, desde que haja abatimento da dívida, porque sabem os tratados inviáveis. No entanto, há uma explicação para essa linha: ela imputa a Bruxelas e Berlim todo o ónus da solução. Mesmo que a Europa se resuma agora à lei da austeridade, o que significa que não há política estruturante de esquerda no quadro das restrições do euro e da liberdade de circulação de capitais, a primeira decisão, a que vai determinar o futuro da Grécia, é sempre a escolha entre um novo programa da troika ou a redução da dívida. No curtissimo prazo, a Grécia exige um furacão e muita precisão e é o que tem tido. Preparado, portanto.

No longo prazo, mais difícil será. Nem a Europa sobreviverá a esta morte lenta que escolheu nem a Grécia poderá aceitar a chantagem tétrica. No entanto, se a política bizantina não tem boa fama, é conveniente lembrar que, na terra agreste em que se inventou a primeira forma de democracia, ela durou mais um milénio do que o maior império dos tempos antigos, o romano.

Publicado na revista "E" da edição de 31 de janeiro do semanário Expresso.

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Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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